Por: Isabel
Cristina e Livania Rafaela
Vê aquele homem?
Ali, olhando-se no espelho? Mas esse homem não é daqui, ele foi trazido. Foi
transportado sem sua família, esta virá depois, e acorrentado nos porões de
navios de cor, escuros, negros. Quando
chegou, já não era um homem, avistaram ao longe sua negritude e fizeram-lhe escravo. Compraram, embora
não estivesse à venda, tudo o que ele tinha: o corpo e a alma, nacionalidade e
cultura. Sua única identidade era sua cor. E tudo em seguida, se deu por conta
da cor. Cortaram-lhe as asas por causa da cor. Por causa da cor, prenderam-lhe
numa gaiola. Por causa da cor, deixou de ser homem. Por causa da cor, não
existia sua cor.
Já parou pra se
perguntar qual a origem do significado
das cores? Aquelas que enfeitam teu
quarto, que marcam teu dia e noite? Isso... aquelas que tingem bandeiras, que
pintam teu corpo, que separam e distinguem? Vamos mais além: e se o amarelo
fosse azul; o azul fosse verde; o verde, amarelo; o branco fosse preto e o
preto, branco? Calma amigo, me empreste tua interrogação e junto com a minha
vamos nos apoiando até ali.
Alguém disse ao
opressor daquele homem que o negro era a ausência do branco. Tempos depois... séculos
depois, disseram àquele homem que poderia ser livre, em suas mãos colocaram uma
carta de liberdade, mas essa carta estava em nome da liberdade de outro... O
tiraram daquela gaiola o colocando em outra: gaiola branca. Sua única esperança
era tornar-se branco, mas como? Precisava deixar de ser negro. Assim, seu corpo
negro, dentro da gaiola, vislumbrou um espelho, o homem viu seu reflexo
totalmente branco... Deixou de ser negro? Não, negou o “ser negro”...
Ah sim, as cores... por que mesmo significam as cores?
A curta história que apresentamos pode nos dizer muito sobre um
fenômeno social presente tanto no Brasil como em outros países e que ainda insiste
em ficar: o racismo. Conceituado por Lima e Vala (2004) como
“um processo de hierarquização, exclusão e
discriminação contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida
como diferente com base em alguma marca física externa (real ou imaginada) a
qual é re-significada em termos de uma marca cultural interna que define
padrões de comportamento (p.402)”.
Revela-nos um caminho bastante pertinente para pensarmos as relações
sociais das quais também fazemos parte. Os mesmos autores chamam ainda atenção
para o fato de, a depender do lugar de onde parte a investigação, o racismo
tanto possuir raízes quanto formas de expressão diferentes, ligadas às
características do contexto social de onde emerge. Prova disso são as várias
teorias elaboradas no campo da Psicologia Social que propõem existir, por
exemplo, o racismo ambivalente nos EUA (Katz & Hass, 1988), o racismo sutil
na Europa (Pettigrew & Meertens, 1995) e o racismo cordial no Brasil (Turra
& Venturi, 1995). É importante ter em mente que se preserva a possibilidade
de identificação de mais de uma forma num mesmo lugar ou o contrário.
Apesar de cada uma das referidas teorias ancorar-se em fundamentos
específicos, o ponto comum entre elas é que todas partem da ideia de que essas
formas estudadas resultam da tentativa de adequação à norma social
antirracista. Em outras palavras, todos os tipos de racismo acima citados tem
sua expressão maquiada (embora não menos danosa) e dificilmente apresentam-se
sob a sua forma mais direta e flagrante, uma vez que, agora, o que é desejável
e socialmente compartilhado (a norma) é contrário a esse posicionamento. Mais,
além disso, essas novas formas de racismo situam-se, sobretudo, no nível
interpessoal das relações ligadas a comportamentos discriminatórios do
dia-a-dia das pessoas (Essed, 1991, citado por Lima & Vala, 2004).
Voltando o nosso olhar para o contexto brasileiro, é na época do
Brasil-colônia que se encontra uma importante referência para o surgimento do
racismo no país, como sugere Hofbauer (2003), ao argumentar que o “ideário do
branqueamento” e a escravidão foram processos que se complementaram.
Segundo a linha de raciocínio do autor, “o transporte de escravos africanos
era incentivado no discurso jesuítico como ‘resgate’”, isto porque havia
subjacente a ele a ideia do negro como pecado, aparecendo essa vinda para o
Novo Mundo como uma possibilidade de “reintegração à família cristã”, de
salvação para a alma. Desse modo, a vida do escravo era tratada como prova, que
no final conduziria ao Reino de Deus, e a sua relação com o seu senhor seria
vantajosa tanto para um quanto para outro: o escravo, contribuindo com a sua
força física, receberia a proteção do senhor. A este cabia, portanto,
alimentá-los, educá-los como bons cristãos e puni-los sempre que fosse
necessário, de forma justa e moderada.
Esta conformação ideológica que pôs de um lado cor negra, imoralidade e
escravidão e de outro, cor branca, liberdade e ideal religioso teve uma
implicação interessante ligada ao branqueamento apontado anteriormente: o
processo empreendido por aqueles que desejavam ascender nessas relações era
referido como um embranquecimento, um clareamento. O branqueamento referido,
que mais tarde encontrou apoio em teorias científicas europeias que traziam “concepções
raciais”, também teve sua parte quando na implantação da abolição no país, já
que esta trazia consigo a ideia de importação de mão de obra europeia. Em
outras palavras, havia outra fusão ideológica: aquela entre as categorias
branco e progresso.
O raciocínio anterior, ainda que apresentado por nós de modo bastante
superficial revela-se como um importante auxílio para pensar as raízes do
racismo no Brasil e também instiga-nos a pensar sobre o que permanece disso
tudo hoje. Embora conscientes da diversidade de elementos que atravessam tal
fenômeno, com relativa segurança podemos afirmar que: é herança dessa
construção a ressignificação da cor negra em termos de “justificação” de práticas
de racismo e que esse “ideário de branqueamento” persiste até hoje,
identificável no “racismo à brasileira”, o dito cordial, como referido no
início desse texto.
Quando falamos em racismo cordial queremos nos referir à “forma de
discriminação contra cidadãos não brancos (negros e mulatos), que se
caracteriza por uma polidez superficial que reveste atitudes e comportamentos
discriminatórios, que se expressam ao nível das relações interpessoais através
de piadas, ditos populares e brincadeiras de cunho ‘racial’” (Turra &
Venturi, 1995, citados por Lima & Vala, 2004).
Não precisamos ir
muito longe do vivenciado dia a dia para reconhecer essas formas do racismo
presentes em certos ditos (bastante) populares... “Negro quando não suja na
entrada, suja na saída” (quando em situações de equívocos cometidos por pessoas
negras);“Eu que não vou mentir, pra ficar
preta(o)?!”; “Acho que sou afrodescente,
porque eu gosto de apanhar” (em situação de ironia, na qual se faz
referência a algum tipo de ‘sofrimento’ imposto por alguém a ele próprio); “Vocês
que são brancas(os) que se entendam!” (quando diante de pessoas discutindo
algo, discussão na qual o falante não gostaria de se implicar); “Abaixa o tom
comigo que eu não sou tuas nega!” (geralmente utilizada quando, numa
discussão, alguém grita com a pessoa com quem está brigando e esta protesta
oferecendo como justificativa o fato de não ser negra).
Embora a
caracterização de um discurso como racista seja polemizável, o fato é que ele circula e o faz também por
meio de aparelhos ideológicos, como a mídia. Entendendo-a como qualquer
instrumento que medie algum tipo de informação, funciona como veículo para
circulação de representações do que é belo e desejável e é nesta medida que
podemos relacioná-la ao “ideário de branqueamento” mencionado um pouco antes no
texto: podemos dizer que os padrões do que é belo e desejável ligam-se a tudo
aquilo que caracteriza o branco.
Se atentarmos, como sugerem Ferreira e Camargo (2011), para os impactos
desse tipo de representação nas formas de constituição subjetiva do negro, seremos
colocados diante de inquietantes constatações. Negam-se cor, traços físicos, aspectos culturais, tudo
o que se distancie da “branquitude” e aceita-se o que se aproxima dela. Os
autores ainda comentam que é mais confortável reconhecer-se como moreno,
mulato, dentre outros termos que “clareiam”, do que assumir-se a negritude; é
mais conveniente olhar-se num espelho e ver um reflexo consonante a um ideal. Em
que pese o potencial semântico das palavras, o aceitar e o negar aqui
utilizados não se relacionam apenas ao dizer sim e dizer não simbólicos, mas à
desejabilidade quase imposta dessas falas. Daí o quê de crueldade que sustenta
o racismo, reconhecido inclusive nesse “conforto” e “conveniência” mencionados anteriormente.
É o que tratamos na história apresentada no início do texto como gaiola
branca.
Num último esforço
de reflexão, podemos ir mais além com a referida metáfora: Se é uma gaiola, quem
está preso nela? Ao contrário do que podemos pensar à primeira vista, não
somente negros. A grande questão é saber como o aprisionamento está posto do
lado de dentro e do lado de fora da gaiola.
Referências
DAHIA, S.L.M. XV
Riso, Preconceito Racial e Aliança Inconsciente: uma leitura possível. In:
ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO., 2009. Paraíba. Resumos... 2009. 10 p.
FERREIRA, R. F;
CAMARGO, A.M. As Relações Cotidianas e a Construção da Identidade
Negra.PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2011, 31 (2), 374-389.
LIMA,
M.E.O; VALA, J. As normas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de
Psicologia, v. 9(3), 401-404, 2004.
HOFBAUER,
A. O conceito de “raça” e o ideário “do branqueamento” do século XIX: bases
ideológicas do racismo brasileiro. Teoria e Pesquisa, v.42 e 43, 48 p., 2003.
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