quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Racismo no Brasil

Por: Isabel Cristina e Livania Rafaela

Vê aquele homem? Ali, olhando-se no espelho? Mas esse homem não é daqui, ele foi trazido. Foi transportado sem sua família, esta virá depois, e acorrentado nos porões de navios de cor, escuros, negros. Quando chegou, já não era um homem, avistaram ao longe sua negritude e fizeram-lhe escravo. Compraram, embora não estivesse à venda, tudo o que ele tinha: o corpo e a alma, nacionalidade e cultura. Sua única identidade era sua cor. E tudo em seguida, se deu por conta da cor. Cortaram-lhe as asas por causa da cor. Por causa da cor, prenderam-lhe numa gaiola. Por causa da cor, deixou de ser homem. Por causa da cor, não existia sua cor.
Já parou pra se perguntar qual a origem do significado das cores? Aquelas que enfeitam teu quarto, que marcam teu dia e noite? Isso... aquelas que tingem bandeiras, que pintam teu corpo, que separam e distinguem? Vamos mais além: e se o amarelo fosse azul; o azul fosse verde; o verde, amarelo; o branco fosse preto e o preto, branco? Calma amigo, me empreste tua interrogação e junto com a minha vamos nos apoiando até ali.
Alguém disse ao opressor daquele homem que o negro era a ausência do branco. Tempos depois... séculos depois, disseram àquele homem que poderia ser livre, em suas mãos colocaram uma carta de liberdade, mas essa carta estava em nome da liberdade de outro... O tiraram daquela gaiola o colocando em outra: gaiola branca. Sua única esperança era tornar-se branco, mas como? Precisava deixar de ser negro. Assim, seu corpo negro, dentro da gaiola, vislumbrou um espelho, o homem viu seu reflexo totalmente branco... Deixou de ser negro? Não, negou o “ser negro”...
 Ah sim, as cores... por que mesmo significam as cores?

A curta história que apresentamos pode nos dizer muito sobre um fenômeno social presente tanto no Brasil como em outros países e que ainda insiste em ficar: o racismo. Conceituado por Lima e Vala (2004) como
“um processo de hierarquização, exclusão e discriminação contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida como diferente com base em alguma marca física externa (real ou imaginada) a qual é re-significada em termos de uma marca cultural interna que define padrões de comportamento (p.402)”.

Revela-nos um caminho bastante pertinente para pensarmos as relações sociais das quais também fazemos parte. Os mesmos autores chamam ainda atenção para o fato de, a depender do lugar de onde parte a investigação, o racismo tanto possuir raízes quanto formas de expressão diferentes, ligadas às características do contexto social de onde emerge. Prova disso são as várias teorias elaboradas no campo da Psicologia Social que propõem existir, por exemplo, o racismo ambivalente nos EUA (Katz & Hass, 1988), o racismo sutil na Europa (Pettigrew & Meertens, 1995) e o racismo cordial no Brasil (Turra & Venturi, 1995). É importante ter em mente que se preserva a possibilidade de identificação de mais de uma forma num mesmo lugar ou o contrário.
Apesar de cada uma das referidas teorias ancorar-se em fundamentos específicos, o ponto comum entre elas é que todas partem da ideia de que essas formas estudadas resultam da tentativa de adequação à norma social antirracista. Em outras palavras, todos os tipos de racismo acima citados tem sua expressão maquiada (embora não menos danosa) e dificilmente apresentam-se sob a sua forma mais direta e flagrante, uma vez que, agora, o que é desejável e socialmente compartilhado (a norma) é contrário a esse posicionamento. Mais, além disso, essas novas formas de racismo situam-se, sobretudo, no nível interpessoal das relações ligadas a comportamentos discriminatórios do dia-a-dia das pessoas (Essed, 1991, citado por Lima & Vala, 2004).
Voltando o nosso olhar para o contexto brasileiro, é na época do Brasil-colônia que se encontra uma importante referência para o surgimento do racismo no país, como sugere Hofbauer (2003), ao argumentar que o “ideário do branqueamento” e a escravidão foram processos que se complementaram.
Segundo a linha de raciocínio do autor, “o transporte de escravos africanos era incentivado no discurso jesuítico como ‘resgate’”, isto porque havia subjacente a ele a ideia do negro como pecado, aparecendo essa vinda para o Novo Mundo como uma possibilidade de “reintegração à família cristã”, de salvação para a alma. Desse modo, a vida do escravo era tratada como prova, que no final conduziria ao Reino de Deus, e a sua relação com o seu senhor seria vantajosa tanto para um quanto para outro: o escravo, contribuindo com a sua força física, receberia a proteção do senhor. A este cabia, portanto, alimentá-los, educá-los como bons cristãos e puni-los sempre que fosse necessário, de forma justa e moderada.
Esta conformação ideológica que pôs de um lado cor negra, imoralidade e escravidão e de outro, cor branca, liberdade e ideal religioso teve uma implicação interessante ligada ao branqueamento apontado anteriormente: o processo empreendido por aqueles que desejavam ascender nessas relações era referido como um embranquecimento, um clareamento. O branqueamento referido, que mais tarde encontrou apoio em teorias científicas europeias que traziam “concepções raciais”, também teve sua parte quando na implantação da abolição no país, já que esta trazia consigo a ideia de importação de mão de obra europeia. Em outras palavras, havia outra fusão ideológica: aquela entre as categorias branco e progresso.
O raciocínio anterior, ainda que apresentado por nós de modo bastante superficial revela-se como um importante auxílio para pensar as raízes do racismo no Brasil e também instiga-nos a pensar sobre o que permanece disso tudo hoje. Embora conscientes da diversidade de elementos que atravessam tal fenômeno, com relativa segurança podemos afirmar que: é herança dessa construção a ressignificação da cor negra em termos de “justificação” de práticas de racismo e que esse “ideário de branqueamento” persiste até hoje, identificável no “racismo à brasileira”, o dito cordial, como referido no início desse texto.
Quando falamos em racismo cordial queremos nos referir à “forma de discriminação contra cidadãos não brancos (negros e mulatos), que se caracteriza por uma polidez superficial que reveste atitudes e comportamentos discriminatórios, que se expressam ao nível das relações interpessoais através de piadas, ditos populares e brincadeiras de cunho ‘racial’” (Turra & Venturi, 1995, citados por Lima & Vala, 2004).
Não precisamos ir muito longe do vivenciado dia a dia para reconhecer essas formas do racismo presentes em certos ditos (bastante) populares... “Negro quando não suja na entrada, suja na saída” (quando em situações de equívocos cometidos por pessoas negras);“Eu que não vou mentir, pra ficar preta(o)?!”; “Acho que sou afrodescente, porque eu gosto de apanhar” (em situação de ironia, na qual se faz referência a algum tipo de ‘sofrimento’ imposto por alguém a ele próprio); “Vocês que são brancas(os) que se entendam!” (quando diante de pessoas discutindo algo, discussão na qual o falante não gostaria de se implicar); “Abaixa o tom comigo que eu não sou tuas nega!” (geralmente utilizada quando, numa discussão, alguém grita com a pessoa com quem está brigando e esta protesta oferecendo como justificativa o fato de não ser negra).
Embora a caracterização de um discurso como racista seja polemizável, o fato é que ele circula e o faz também por meio de aparelhos ideológicos, como a mídia. Entendendo-a como qualquer instrumento que medie algum tipo de informação, funciona como veículo para circulação de representações do que é belo e desejável e é nesta medida que podemos relacioná-la ao “ideário de branqueamento” mencionado um pouco antes no texto: podemos dizer que os padrões do que é belo e desejável ligam-se a tudo aquilo que caracteriza o branco.
Se atentarmos, como sugerem Ferreira e Camargo (2011), para os impactos desse tipo de representação nas formas de constituição subjetiva do negro, seremos colocados diante de inquietantes constatações. Negam-se cor, traços físicos, aspectos culturais, tudo o que se distancie da “branquitude” e aceita-se o que se aproxima dela. Os autores ainda comentam que é mais confortável reconhecer-se como moreno, mulato, dentre outros termos que “clareiam”, do que assumir-se a negritude; é mais conveniente olhar-se num espelho e ver um reflexo consonante a um ideal. Em que pese o potencial semântico das palavras, o aceitar e o negar aqui utilizados não se relacionam apenas ao dizer sim e dizer não simbólicos, mas à desejabilidade quase imposta dessas falas. Daí o quê de crueldade que sustenta o racismo, reconhecido inclusive nesse “conforto” e “conveniência” mencionados anteriormente. É o que tratamos na história apresentada no início do texto como gaiola branca.
Num último esforço de reflexão, podemos ir mais além com a referida metáfora: Se é uma gaiola, quem está preso nela? Ao contrário do que podemos pensar à primeira vista, não somente negros. A grande questão é saber como o aprisionamento está posto do lado de dentro e do lado de fora da gaiola.

Referências
DAHIA, S.L.M. XV Riso, Preconceito Racial e Aliança Inconsciente: uma leitura possível. In: ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO., 2009. Paraíba. Resumos... 2009. 10 p.
FERREIRA, R. F; CAMARGO, A.M. As Relações Cotidianas e a Construção da Identidade Negra.PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2011, 31 (2), 374-389.
LIMA, M.E.O; VALA, J. As normas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia, v. 9(3), 401-404, 2004.

HOFBAUER, A. O conceito de “raça” e o ideário “do branqueamento” do século XIX: bases ideológicas do racismo brasileiro. Teoria e Pesquisa, v.42 e 43, 48 p., 2003.

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