quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A Fórmula do Mal

Por: Alina Coriolano e Phagner Ramos

Em novelas, filmes e séries é comum encontrar personagens, conhecidos como vilões, que agem com extrema maldade e que cometem as piores crueldades, enquanto outros personagens, os mocinhos, são postos como o bem e a pureza em sua totalidade. Quase que intuitivamente, abre-se uma distância entre aqueles que são tidos como bons e aqueles que são tidos como maus, servindo de espelho para as concepções empregadas no cotidiano.

“Pessoas más” são sempre citadas como aquelas que cometeram assassinatos e torturas, por exemplo, de modo a gerar uma inquietação nas “pessoas de bem” que não conseguem entender tais atos: “Como essas pessoas podem ser tão más?”, “Ele não é um ser humano, é um monstro!”. Parece tão simples e fácil imaginar que as pessoas que têm um comportamento muito desviante como este são loucas, insanas, psicopatas, tudo junto ou simplesmente más, de modo que, estas categorias parecem distantes de nós, boas pessoas.
Ao questionar-se ou propor-se a estudar a respeito de ética e direitos humanos, parece inevitável refletir sobre certo e errado e, consequentemente sobre a dicotomia bem/mal. As concepções de bem e mal, sendo resultado de uma construção social, estão sempre relacionadas a questões éticas e morais ou aos desvios destas.
O mal e o bem sempre foram temas da reflexão humana e, de forma especial, na Idade Média, período fortemente marcado pela religião, quando Tomás de Aquino buscou explicar o tema através da ideologia cristã. Assim como Agostinho, Aquino partia do pressuposto da cristandade, colocando Deus em um ponto central da discussão e declarando que algumas coisas não poderiam ser explicadas, pois fariam parte de uma verdade que não nos é acessível.
Apesar disso, Aquino aprofunda-se neste questionamento e afirma que o mal não é uma pessoa em si, muito menos alguém que nasceria literalmente “má”, já que todos são filhos de Deus, o Supremo Bem, e d’Ele nenhum mal se gera; mas podem ocorrer falhas nesse “bem” criado por Deus o que originaria o mal, que, ainda assim, geraria um bem maior (MARCONDES, 2007).
Passados alguns séculos desde estas reflexões, descobre-se que durante a Segunda Guerra Mundial foram realizadas experiências cruéis com seres humanos envolvendo práticas de congelamento e testes de subnutrição, por exemplo. Conforme explicitado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948, p.02), “considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade” deram-se início a medidas que evitassem que atos como estes ocorressem novamente. Dentre elas, estão a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos e inúmeras pesquisas de cunho social.
Impactando o mundo com estes acontecimentos, sempre em diálogo com a teoria kantiana, Hannah Arendt acreditava em “uma distinção entre o certo e o errado, e essa é uma distinção absoluta. [...] Todo ser humano em sã consciência é capaz dessa distinção” (ARENDT, 2008 apud KELSON, 2011, p.59). Diante da oportunidade de acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann, responsável pela logística de deportação para os campos de extermínio, Arendt depara-se com um homem que se declara inocente, sem arrependimentos e que afirma apenas ter agido conforme as ordens que lhe foram dadas.
Após o fim do julgamento, Arendt pontua “a ideia de que o mal não é exercido apenas por fanáticos ou sociopatas, mas também por pessoas comuns que, acatando ordens superiores, cometem atos abjetos que, em dado contexto, consideraram ‘normais’” (STORINO, 2013, p. 07). Kelson explica ainda sobre esta experiência que:
Analisando Eichmann e os crimes nazistas, esta ausência de pensamento não representava estupidez e tampouco esquecimento dos costumes e hábitos morais e éticos apreendidos e que “nada tinha a ver com as assim chamadas decisões éticas ou assuntos de consciência”. Esta lhe parecia uma dimensão do fenômeno do mal sem precedentes na história do pensamento tradicional. A Banalidade do Mal seria um mal que não tem necessariamente raízes nem na natureza humana nem em motivos maus, mas na ausência de raízes e pensamento (2011, p.65).

Intrigado com os achados e colocações de Arendt, Stanley Milgram realizou um experimento para averiguar se, em plena capacidade mental, pessoas comuns obedeceriam a ordens ainda que estas chegassem a prejudicar outro ser humano (neste caso, através da aplicação de choques elétricos de voltagens cada vez maiores em “alunos” que respondessem diferente das respostas esperadas pelos pesquisadores). Foram usadas diversas variáveis e, diferentemente do esperado, 65% dos participantes chegou a dar choques de 450 volts enquanto os "alunos" imploravam para que eles parassem (GARCIA-MARQUES, 2002). Chocando o mundo ao mostrar que cidadãos americanos comuns seriam capazes de cometer atrocidades, Milgram parece reforçar o defendido por Arendt de que a maldade não é algo restrito a certas categorias sociais.
Como Milgram, houve outros pesquisadores que tiveram achados surpreendentes e até assustadores por parecerem comparáveis a acontecimentos terríveis da história da humanidade. Questionado porque pessoas comuns e tidas como boas são capazes de cometer atrocidades que nunca haviam imaginado, o que ocorreria com estas pessoas para tornarem-se capazes de cometer estes atos, onde localiza-se a linha que separa bem e mal, Philip Zimbardorealiza recorreu à mundialmente conhecida Experiência da Prisão de Stanford (MANSO-PINTO, 2011).
Assim, o experimento deu início quando 70 candidatos responderam um anúncio de jornal para participar de uma pesquisa sobre os efeitos psicológicos da vida prisional. Cuidadosamente selecionados, os candidatos eram do sexo masculino, universitários, sem indícios de problemas psicológicos e de saúde, sem histórico de abuso de drogas ou de atividades criminais e de classe média.
Diante isto, estes estudantes foram colocados numa prisão simulada como carcereiros e prisioneiros mediante sorteio com base no lançamento de uma moeda ao ar. Apesar de previsto para durar duas semanas, o experimento foi encerrado após apenas alguns dias devido a ocorrência de humilhação, tortura psicológica e física cometidas durante o tempo decorrido do estudo. Através deste experimento, Zimbardo cria a teoria do Efeito Lúcifer (do original inglês, The Lucifer Effect). Pontes e Brito explicam a teoria, em que:
A emergência de ações malignas perpetradas por indivíduos racionais, sadios e conscientes de desempenhar um papel que lhes foi prescrito deve ser compreendida a partir de um conjunto de fatores estruturais determinantes que definem através de sua força persuasiva as ações de cada indivíduo inserido nessa situação específica. As ações individuais são consideradas fruto de um contexto situacional extremo, onde tanto fatores ambientais imediatos quanto elementos psicológicos desembocam numa ação maligna inesperada (2014, p.388).

Essas colocações parecem corroborar com os achados de Arendt e Milgram, pois explicam a má conduta através de contextos específicos de “sistemas maus”. Assim, a maldade parece não ser uma escolha individual, mas produto de demandas externas de modo que, perante a obediência e a conformidade em situações que implicam em sobrevivência, os indivíduos podem ser levados a ações que não condizem com o que é considerado normal em outros contextos, conforme exposto por Pontes e Brito (2014).
Decorridos mais de trinta anos do experimento, soldados americanos cometiam inúmeros atos de humilhação e tortura no Centro de Inteligência e Prisão Militar de Abu Ghraib onde eram mantidos prisioneiros de guerra no Iraque, caso que o Pentágono justifica como “maçãs ruins numa cesta de boas maçãs”. De modo a perceber que o assunto não é tema do passado.
Apesar da grande notoriedade e impacto das contribuições trazidas pelos autores supracitados, estas demonstram ainda a fundamental relevância de considerar as características individuais de cada pessoa e a subjetividade destas de modo que, conforme percebido no estudo de Milgram, algumas se recusaram a prosseguir com o experimento e, durante o Holocausto houve também pessoas que abrigaram e ajudaram na fuga dos perseguidos. Assim, parece falho dizer que as demandas estabelecidas por forças superiores e contextos específicos atinge a todos de maneira igual e estável sem perda e/ou dissipação (PONTES; BRITO, 2014).
Outra crítica à abordagem do mal como fruto de uma situação, vem de Erich Fromm que propõe uma abordagem com aprofundamento do contexto histórico e considerando elementos diversos, dentre eles social, cultural, afetivo, econômico e político já que o mal possui um caráter social diferente conforme o tempo (PONTES; BRITO, 2014). Compara-se assim que Zimbardo parece fundamentar sua perspectiva numa única situação e contexto específico para explicar este complexo fenômeno. Perante isto, Fromm:
Oferece uma alternativa psicológica e sociológica para a compreensão de certos traços morais presentes no mundo contemporâneo que podem nos ajudar a sistematizar e compreender a permanência do mal como fruto do desenvolvimento de um caráter social dissociativo, com tendências ao autoritarismo e a rendição da liberdade individual como mecanismo de fuga num mundo de sofrimento e solidão. Dessa maneira, podemos considerar o conceito de caráter social como alternativa que traz em si o aspecto histórico necessário para compreensão do mal como categoria permanente nas ações humanas no mundo contemporâneo (PONTES; BRITO, 2014, p.388-389).

Em contrapartida, outras teorias fortalecem-se em explicações a nível individual de modo que, fundamentam-se nos achados do material genético humano e lesões e/ou disfunções em áreas cerebrais específicas. Diante isto, iniciaram-se pesquisas averiguando a estrutura e o funcionamento do cérebro de assassinos e de pessoas consideradas “não-violentas”. Os achados indicam que o córtex pré-frontal (parte cerebral onde nascem as emoções agressivas) dos assassinos funciona de maneira precária sendo esta a justificativa para este tipo de comportamento já que haveriam problemas no controle e regulação de partes do cérebro que são mais primitivas (PACHECO, 2011).
Além desses achados, contribuições do campo da genética demonstram que o gene da enzima monoamina oxidase A (MAO A) e o neurotransmissor serotonina são responsáveis por controlar dentre outras coisas, a impulsividade e a agressividade. De modo que a baixa da serotonina tende a implicar em comportamentos mais violentos, conforme os resultados encontrados em diversos experimentos:
Tais pesquisas buscam encontrar fatores genéticos que influenciam o desenvolvimento anômalo de enzimas e neurotransmissores capazes de explicar diversos tipos de transtornos psiquiátricos, tanto de conduta, déficit de atenção e hiperatividade, quanto de depressões e ansiedades infantis (PACHECO, 2011, p.115).

Popularmente conhecidas, as doenças mentais também são um dos argumentos comumente utilizados para explicar o cometimento de atos considerados maldosos, apesar de grande parte das pesquisas internacionais apontar que estas conclusões não correspondem a maioria dos casos. Em contrapartida, no Brasil:
Em um estudo numa comunidade de baixa renda, Flores et al. (2002) mostraram que, devido às dificuldades para obter atendimento para problemas de saúde, especialmente mental, as famílias em situação de indigência social ficavam presas em um círculo no qual a violência familiar aumentava o risco de doença mental na família, que por sua vez levava a vários comportamentos desadaptativos, predispondo a nova geração a maior risco de envolvimento em violência e maior risco de desenvolver doenças mentais (FLORES, 2002, p.200).

As concepções e estudos sobre a maldade indagam sobre como agimos e pensamos, nos fazem refletir se há uma distância muito grande entre as pessoas ditas boas e as ditas más e questionam ainda se há validade nesta distinção de modo que, ainda há muito a se refletir e pesquisar sobre esta temática já que, com base nestes achados, o mal e o bem não estão tão claros e distantes parecendo necessitar de referências externas para nortear-se. Perante isto, concordamos com Zimbardo (2007 apud MANSO-PINTO, 2011, p.137) ao afirmar que “una de las más grandes ventajas que posee la especie humana es su capacidad para explorar y comprender el mundo social que ha creado y para aplicar lo que de ello aprende a mejorar la vida”.

REFERÊNCIAS
FLORES, Renato Zamora. A biologia na violência. Ciênc. saúde coletiva,  São Paulo ,  v. 7, n. 1, p. 197-202,   2002 . 
GARCIA-MARQUES, L. O inferno são os outros: o estudo da influência social. In: VALA, J.; MONTEIRO; M. B. (Coord.). Psicologia Social. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2002, p.227-292.
KELSON, Ruth. Hannah Arendt e o âmbito do conceito de Banalidade do Mal. 2011. 145f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). Pontífica Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
MANSO-PINTO, Juan. The LuciferEffect. ActualidadesenPsicología, v. 22, n. 109, p. 135-137, 2011.
MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Ética: De Platão a Foucault. Ed. 5, 2007.
ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em < http://www.dudh.org.br/wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em 05/7/2015.
PACHECO, Pedro José. Pesquisas do cérebro e psicopatias: a potencialidade do criminoso justificada por saberes científicos. 2011. 255f.  Tese (Doutorado em Psicologia). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
PONTES, Nicole; BRITO, Simone. “Contra o efeito Lúcifer: esboço para uma teoria sociológica do mal”. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13, n. 39, pp. 384-398, dezembro de 2014.

STORINO, Fabio F. Eichmann na Paulista. Página 22, n. 76, p. 7.

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