domingo, 26 de julho de 2015

Direitos Humanos de quem?

Por: Fabíola Freire e Taciana Dias



Em Abril de 1945, após a Segunda Guerra Mundial, 50 nações se uniram em São Franciso (EUA) com o objetivo de formar um corpo internacional para promover a paz e evitar futuras guerras. “E assim nasceu a conferência das nações unidas que na apresentação da sua carta de proposta afirmava: Nós os povos das Nações Unidas estamos determinados a salvar as gerações futuras do flagelo da guerra, que por duas vezes na nossa vida trouxe incalculável sofrimento à Humanidade”


Assim, em 1948 a comissão de direitos humanos já tinha captado a atenção mundial e elaborou o que viria a ser a declaração Universal dos Direitos Humanos que se caracteriza pelo reconhecimento, ao longo do tempo, de que determinadas condições são essenciais para que as pessoas possam viver plenamente e de forma digna. Portanto, precisam ser garantidas a TODOS E TODAS sem distinção de localização geográfica, raça, gênero, situação econômica ou de qualquer outra natureza.

No seu preâmbulo e no Artigo 1.º, a Declaração proclama os direitos inerentes de todos os seres humanos:
 “O desconhecimento e o desprezo dos direitos humanos conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade, e o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem”
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.

O documento possui trinta artigos que foram reunidos e codificados num único documento com a função de garantir os direitos básicos para todos. Em consequência, muitos destes direitos, de várias formas, são hoje partes das leis constitucionais das nações democráticas.  A grande importância da declaração é que passa a construir a unificação da humanidade, demonstrando que nenhum povo, etnia, grupo, religião pode se considerar como superior a outro.

Em linhas gerais os direitos garantidos são relacionados à educação, moradia, saúde, trabalho, liberdade, entre outros.   
Tal como o Artigo 24 que traz:
"Toda pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas".

Este artigo aborda os direitos relacionados ao trabalho assegurando a toda pessoa que exerce atividade remunerada, o direito de repouso e lazer além de férias periódicas pagas. Servindo, assim, como um regulamentador das atividades trabalhistas dos sujeitos que se envolvem neste tipo de atividade.

Em contrapartida, diariamente, nos deparamos com noticias tais como:  
 (Disponível em: http://glo.bo/1xxIMIB)

A empresa Contax foi interditada, pois, segundo denúncias, descumpria alguns regulamentos direcionados à saúde do trabalhador. Os funcionários não tinham tempo para irem ao banheiro, eram submetidos à jornada excessiva de trabalho, além de pouco tempo para descanso e para o horário de almoço. Condições que muitos se submetiam por precisar de um trabalho e de uma colocação no mercado. Assim, após denuncia, uma das unidades da empresa foi interditada até cumprirem com o estabelecido pelo Ministério do Trabalho.

Claramente, estas condições em que foram submetidos ferem a vários princípios dos direitos humanos e são condições absurdas que não se espera encontrar em uma realidade tão próxima da nossa.


Como mostrado na reportagem cerca de 10 mil pessoas – um número bem expressivo para uma nação que aboliu a escravidão desde 1888 – foram submetidas a condições de escravidão nos últimos quatro anos, com jornadas subumanas de trabalho e condições precárias de subsistência. Por mais que pareça irreal, ainda existem muitos submetidos a essas condições e, por vezes, sem conhecimento que possuem muitos direitos que não estão sendo cumpridos.
“  A gramática dos direitos humanos está fundada no pressuposto moral de que todas as pessoas merecem igual respeito umas das outras. Somente a partir do momento em que formos capazes de agir em relação ao outro da mesma forma que gostaríamos de que agissem em relação a nós é que estaremos conjugando essa gramática corretamente. Os argumentos de que direitos humanos são direitos de bandidos, de que atrapalham a atuação das polícias ou de que minam a soberania do Estado buscam destruir essa lógica. Aderir a qualquer desses argumentos significa assumir a proposição de que algumas pessoas tem mais valor, outras menos, e de que ao Estado e seus funcionários cabe fazer a escolha de quais deverão ser respeitadas e quais poderão ser submetidas à exclusão, à tortura, à violência e à discriminação” (Oscar Vilhena Vieira[1]).

Quando nos deparamos com notícias como essas duas demonstradas acima, a maioria tem uma reação de espanto, pois não espera que pessoas ainda estejam submetidas a esta realidade, e, além disso, esta reação se potencializa por ser em realidades bem próximas a de cada um. São da nossa cidade e do nosso país, respectivamente.

 Por fim, muitos podem se sentir desencorajados e tomar como um exemplo do mau funcionamento dos direitos humanos, entretanto, ao deslocar o olhar e enxergar outros pontos de vista podem notar que por casos como estes tornarem-se públicos e serem denunciados, os direitos humanos foram respeitados e esses trabalhadores não foram mais submetidos a situações subumanas.

 O que fica de importante de tudo isso é que cada um se torne agente de mudança e permita, cada um dentro de sua realidade, que os artigos dos direitos humanos sejam não só respeitados, mas cumpridos.

Para ter acesso aos 30 artigos da declaração, acesse: http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u298.shtml

Referências:
Anônimo, 2003.  Conheça a declaração universal dos direitos humanos. Folha online. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u298.shtml> e acessado em 22 de junho de 2015
Anônimo, 2008. Uma breve história dos direitos Humanos. Unidos pelos direitos Humanos. Disponível em >http://www.humanrights.com/pt/what-are-human-rights/brief-history/cyrus-cylinder.html> e acessado em 22 de junho de 2015 .
Djalma Maranhão, memorial online, 1995. Disponível em <http://dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/3teses.html > e acessado em 30 de junho de 2015.
Portal planalto, 2015. Fiscalização liberta 10 mil pessoas em situação de escravidão em 4 anos. Disponível em http://www2.planalto.gov.br/noticias/2015/05/fiscalizacao-liberta-mais-de-10-mil-trabalhadores-em-situacao-de-escravidao-em-4-anos e acessado em 15 de maio de 2015.




[1] Oscar Vilhena é professor de Direito da PUC-SP.
Diretor Executivo do ILANUD/BrasiI, Coordenador do Consórcio  Universitário pelos Direi­tos Humanos PUC-SP/Universidade de Columbia-NY/USP.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Reflexões sobre a corrupção política brasileira: existem escolhas?

Por: Anna de Cássia e Luza de Moura

Um dos temas que vem ganhando grande visibilidade no atual cenário político brasileiro é a corrupção. Em definição trazida por Brei (1996) a corrupção é um “padrão de comportamento que se afasta das normas predominantes em um dado contexto” visando um benefício individual para o corrupto e, para tal, necessita prejudicar outras pessoas.
A corrupção não é um fenômeno atual, ela existe desde os primórdios da humanidade. Para Santo Agostinho, somos marcados pelo pecado original, no qual Adão é seduzido pela cobra, e troca o paraíso pelos prazeres mundanos, da carne. Este seria o primeiro desvio ético, pois o homem seduzido pelas tentações é corrompido, agindo contrariamente à moral.

Segundo a historiadora Denise Moura em entrevista para uma matéria online da BBC, a corrupção no Brasil é documentada desde o período colonial, pois eram oferecidas vantagens para convencer fidalgos a virem para a colônia (MOURA, 2012). E com a distância entre a colônia brasileira e Portugal, o lugar tornou-se propício à corrupção. A historiadora ainda conta que a corrupção se dava em vários setores do funcionalismo público, e que mercadores eram beneficiados quando havia oferecimento de propina.


Na Independência do Brasil, em 1822, existia a corrupção. Foram relatados casos de corrupção eleitoral e através de concessão de obras públicas. A partir daí, pode-se ver diversas formas de corrupção política ao longo da história do país; passando as páginas de um livro de história damos de cara com alguns acontecimentos bem conhecidos, porém frequentemente esquecidos: votos de cabresto, onde o coronel obrigava a população (com subornos ou ameaças) a votar no seu candidato; sistema de degolas, onde deputados eleitos contra a vontade do governo eram simplesmente excluídos da lista oficial pela comissão de apuração eleitoral; posse do presidente Getúlio Vargas, em 1930, quando na verdade foi o seu oponente Júlio Prestes quem ganhou as eleições; a caixinha do Adhemar, onde era arrecadado dinheiro em troca de favores políticos; desvio de verba da previdência e assistência social durante a ditadura militar para patrocínio de campanha presidencial; o escândalo de captação de dinheiro (ou esquema PC) que gerou o impeachment do presidente Collor (BIASON, 2013). Mais recentemente, é possível ainda acrescentar na lista o “mensalão”, o “petrolão”, e tantos outros casos de corrupção que mancham o cenário político e a história do Brasil.


A política e os políticos têm conotação muito negativa no povo brasileiro. A corrupção política prejudica diretamente a sociedade, que pensa que ela está presente em todas as esferas do poder e é um problema sem fim, crônico. Há uma forte sensação de que os representantes políticos, na verdade, não representam os interesses públicos, somente estariam ocupando-se de obter benefício próprio. Por problemas como este que a política causa repulsa nas pessoas, de modo que estas evitam participar e cobrar ativamente dos representantes que são eleitos pela população, através do voto obrigatório.

Mas porque a corrupção existe? Porque a corrupção política existe? Como a ética pode ser pensada a partir desse fenômeno? A corrupção política brasileira é de profundidade imensurável, um sistema; uma vez dentro deste processo, não há muita escolha: participar ou se omitir. Pode-se perceber que é um fenômeno intrínseco à nossa governança; quem não está/esteve envolvido com atividades ilícitas, é bem possível que sabe/soube de algo que não podia contar. É de se pensar se a corrupção aumentou ou apenas se tornou visível. Porque, em nível político, neste momento, estamos em uma democracia na qual a liberdade de expressão é um direito e as notícias não sofrem censura. Por conseguinte, é possível reflexionar e fazer um balanço a respeito das incongruências parlamentares que nos chegam.  

Mario Sérgio Cortella, filósofo e professor acadêmico da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, diz que a ética é uma questão de escolha (2015). Segundo ele, a ética é um conjunto de valores e princípios que vão definir a conduta das pessoas de um determinado grupo, tribo ou sociedade. Dessa forma, ele diz que independente do nosso contexto sociocultural e econômico, nunca somos obrigados a ter comportamentos que vão de encontro à ética: por mais difícil que seja, na maioria das vezes, sempre existe a escolha de infringir as regras éticas ou não. A mesma coisa foi dita, há centenas de anos, por filósofos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, que discutiam sobre o livre arbítrio e como todo ser humano é livre para decidir seguir o caminho do bem ou do mal, sabendo que existirão consequências para qualquer uma das escolhas. “O pecado, ou mal moral, resulta assim de uma escolha” (AGOSTINHO, apud MARCONDES, 2007).

Dessa forma, pode-se inferir que também a corrupção é uma escolha. Cortella (GNT, 2015) nos diz que “a corrupção é uma possibilidade, ela não é uma obrigatoriedade.” Assim sendo, o argumento de que, ao chegar ao parlamento, os políticos se veem sem alternativas em relação ao sistema corruptivo, ou participa ou omite o que sabe, para Cortella, poderia ser uma explicação, uma racionalização a respeito do porquê as pessoas se deixam corromper. Porém, não justifica. Justificar é o mesmo que dizer “tornar justo”, ou seja, fazer com que a moral - isto é, a prática de valores - se alinhe aos princípios éticos. Outro argumento frequentemente usado é de que o poder corrompe. Sobre isso, Cortella (GNT, 2015) diz que o poder não corrompe, ele cria uma circunstância onde se pode fazer uma escolha, corrupta ou não. Argumenta ainda que “O poder seduz, mas ele não te obriga à corrupção”. A forma de agir deveria ser de acordo com a forma íntegra de se pensar, se assim fosse a forma de pensamento e a conduta do político antes de ingressar na vida pública.

O que é uma pessoa íntegra? É uma pessoa correta, que não se desvia do caminho, uma pessoa justa, honesta. É uma pessoa que não tem duas caras. Qual a grande virtude que caracteriza uma pessoa íntegra? Ela é sincera (CORTELLA, 2015).

Ao contrário do que muitos almejam ou idealizam, muitas correntes de pensamentos filosóficos dizem ser impossível chegar um dia ao cenário social em que não haveria mais corrupção. Para Cortella (apud. GNT, 2015), este estado exigiria o fim da liberdade humana. Ele diz que a sociedade pode criar diversas formas de controlar e limitar o mau uso dessa liberdade (que é a função da legislação, por exemplo), mas não pode retirar por completo dos sujeitos esta liberdade. Aquino e Agostinho debateram muito sobre a importância dessa liberdade, ou livre arbítrio para eles, defendendo que o mal acontece como uma corrupção da natureza das coisas criadas, que não pode ser evitado de outra forma se não pelas escolhas éticas, que só são possíveis a partir do livre arbítrio.         

Entretanto, argumentar que a corrupção é impossível de ser extinta não retira dela o caráter impróprio nem torna desnecessárias as lutas contra sua prática. Não é pela dificuldade no combate às suas causas e consequências, que se pode permitir a institucionalização da corrupção política, em um cenário onde as próprias leis muitas vezes ao invés de combatê-la, permitem a sua existência. Foi, por exemplo, arquivada em 2014 a proposta de Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 4.650, levantada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que considera inconstitucional o patrocínio empresarial para campanhas políticas. Circularam matérias online no ano que de 2014, em decorrência das eleições, principalmente no que diz respeito às eleições presidenciais, que a JBS (popularmente conhecida pela marca Friboi) doou cerca de 10 milhões de reais, divididos em duas parcelas equitativas para a então candidata a reeleição pelo PT, Dilma Rouseff e o candidato Aécio Neves, pelo PSDB, como visto em matérias dos jornais O Globo (KRAKOVICS e GOIS, 2014) e Estadão (BURGARELLIet al. 2014).Outra matéria, agora da Revista Fórum (ANJOS, 2015), afirmou ainda que este tipo de doação tem intenção de queo candidato que for eleitofacilitealgumas situações para estas empresas, como financiamentos, licitações, processos fiscais etc.

Relembrando, então, o pensamento de Cortella sobre pessoa íntegra ou virtuosa, cabe concluir fazendo um diálogo com o pensamento filosófico medieval. Tomás de Aquino falou também em virtude como sendo hábito, e que todos os homens têm potência para transformar seus atos e se “divinificar”, entendendo aqui divinificar não no sentido religioso, e sim como alcançar a coerência entre ética e moral. Faz-se necessário lembrar que Aquino tenta explicar a fé através de argumentos racionais. As virtudes para Aquino são Fé, Esperança e Caridade. Guardando o significado religioso de Fé para Aquino, fé nada mais é que acreditar na virtude das pessoas, caridade no sentido de olhar também o outro, de dar atenção às necessidades que não somente as individuais. E esperança, virtude que também é citada por Cortella em sua obra (2015), de ser otimista. Afinal, para Aquino, o perfeito não seria perfeito sem a imperfeição, e para Agostinho “aquele que cai por responsabilidade própria, pode também voltar a erguer-se da mesma forma” (AGOSTINHO, apud MARCONDES, 2007).


Referências Bibliográficas

ANJOS, Anna Beatriz. Ação que proíbe financiamento empresarial de campanhas completa dez meses parada no STF: 2015. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/02/devolve-gilmar/>. Acesso em: 08 jul. 2015.
BIASON, Rita. Breve história da corrupção no Brasil. Movimento Contra Corrupção. São Paulo. out. 2013. Disponível em: <http://www.contracorrupcao.org/2013/10/breve-historia-da-corrupcao-no-brasil.html>. Acesso em: 04 jul. 2015.

BREI, Zani Andrade. Corrupção: dificuldades para definição e para um consenso. Rap: Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, p. 64-77. jan. 1996. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/8128/6943>. Acesso em: 04 jul. 2015.

BURGARELLI, Rodrigo et al. Três empresas bancam 39% da campanha. 2014. Disponível em <http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,tres-empresas-bancam-39-da-campanha,1555032>. Acesso em: 17 jul. 2015.

CORTELLA, Mário Sérgio. EDUCAÇAO, CONVIVENCIA E ETICA: AUDACIA E ESPERANÇA! São Paulo: Cortez, 2015. 120 p.

DELLA BARBA, Mariana; MOURA, Denise. Corrupção no Brasil tem origem no período colonial, diz historiadora. BBC: BBC Brasil. São Paulo, 04 nov. 2012. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/11/121026_corrupcao_origens_mdb.shtml>. Acesso em: 04 jul. 2015.

GNT. Para o filósofo Mario Sergio Cortella, a ética é uma questão de escolha. Direção de PatriciaRubano. Realização de Gnt. São Paulo: Globosat Programadora Ltda., 2015. (7 min.), son., color. Disponível em: <http://gnt.globo.com/programas/saia-justa/sobre.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.

KRAKOVICS, Fernanda; GOIS, Chico.Empresa JBS Friboi é a maior doadora das campanhas de Dilma e Aécio: Presidenciáveis do PT e PSDB receberam R$ 5 milhões cada, quase a metade da arrecadação. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/empresa-jbs-friboi-a-maior-doadora-das-campanhas-de-dilma-aecio-13517327>. Acesso em: 17 jul. 2015.


MARCONDES, Danilo. (2007). Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 5ed, 86-93.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Diálogos éticos no além cristão

Por: Danilo P. Telles de Menezes


   Santo Agostinho passou 844 da pós-vida dele, lá no firmamento, esporadicamente lembrando-se de sua vida terrena, de como saiu da igreja ortodoxa para a cristã ocidental e como foi importante para a criação do pensamento medieval. Certo dia, um recém chegado veio conversar com ele, lhe dizendo que havia lido alguma coisa de suas ideias. Feliz por encontrar alguém que conheceu seus pensamentos térreos, Agostinho iniciou uma leve discussão com o recém iluminado pela graça divina. 

Agostinho: Como você se chama mesmo, meu caro? 

Tomás: Me chamo Tomás, Tomás de Aquino, e como você eu fui um dos filósofos da igreja.

A: Ah... meus tempos de igreja, obviamente não foram tão bons como os que eu tenho por aqui, mas me renderam boas ideias. Conte-me, as crenças maniqueístas continuam presentes? 

T: Refresque-me a memória, Aquino, o que seria o maniqueísmo? 

A: Era a crença vigente nos meus tempos eclesiásticos. Por ela o Bem e o Mal se equiparavam e viviam eternamente em conflito. 

T: Agora me lembro. Do início de sua carreira até os meus tempos terrenos muita coisa na igreja mudou. Você conseguiu desconstruir essa crença, colocou o Bem como substância do real, ao passo que o Mal é a privação dele, ou como você diria, do querer divino. Parabéns, meu caro, claro que daqui de cima você deve ter visto isso tudo, mas seu pensamento foi extremamente relevante. Eu conversei um pouco, logo quando cheguei aqui com o Todo Poderoso e ele me trouxe algumas ideias sobre como as pessoas irão se lembrar de nós, e elas irão lembrar de você como o fundador do pensamento cristão medieval, aquele que deu unidade à igreja. 

A: Nossa, fiquei curioso, daqui a um tempo irei perguntar a Ele sobre seus futuros desejos para com a Terra. Que bom que fui e serei tão importante para o mundo, mas me diga: Eu cheguei à conclusão que o Mal é a privação do Bem, porém caí na cilada de não saber responder sobre a origem do Mal, como ficou isso em seu tempo? 

T: Que o Mal é privação do Bem também esteve em minha concordância, mas vi Deus como o ser perfeito, e como só coube a ele ser perfeito e criador, suas crias haveriam de ter imperfeições. 

A: Muito interessante essa ideia. Para mim, pelo fato do Mal não existir, ficamos temendo, indagando sobre como que ele se manifesta, como que penetra no Bem. Me pareceu que o Mal era mais opressivo por não existir do que se fosse substância. Não nos focaremos tanto nesse assunto agora, já que  Ele me concedeu Sua graça, me esclarecendo muitas coisas. Me diga então, Tomás, você que leu algo sobre mim deve ter lido algo sobre o livre arbítrio, o que achou?  

T: Agostinho, Agostinho, parece que refletimos sobre muita coisa parecida, porém em óticas diferentes, você foi um platonista cristão, eu fui um aristotélico cristão, claro que teremos nossas discordâncias. Você trouxe que Deus concedeu o livre arbítrio ao homem como forma de romper com o determinismo existente nos animais. Ficou claro que se o Homem tendesse, por sua natureza, ao Mal, ele não poderia ser culpabilizado por seus erros, já que Deus o criou para tal. Dessa forma você trouxe que as pessoas que se aproximam do Bem deveriam ser recompensadas, ao passo que as que fazem o Mal deveriam ser punidas. Complementando isso, você pensou também que por Deus ser o Bem supremo tudo que ele cria deve ter algo bom, e como o defeito é voluntário, aquele que cai no pecado pode voltar a ser bom. Sabe das repercussões que essa ideia permeará? 

A: Está falando ainda de sua conversa com Ele? Ainda não, mas com prazer poderei as ouvir. 

T: Daqui a uns seiscentos anos, haverão países considerados laicos e democráticos que entrarão em diversos embates sobre o que é bom para ser replicado nessas sociedades, e sobre o que deve ser proibido. Um exemplo disso é a prática do aborto voluntário, que em sua época de vida já era condenado pela igreja. Do Século III ao XXI os países cristãos irão, em maioria, proibir o aborto por conta dele ser um atentado à vida humana. A questão que fica é: a partir de que momento que a vida humana surge? Além disso, pegando seus ideais de livre arbítrio e Bem e Mal, uma mulher que aborte estará sempre se distanciando de Deus? E quanto aos casos específicos de violência, natimortos e outros sofrimentos envolvidos nas mais diversas gravidezes? Mesmo com esses países se dizendo laicos, essas questões religiosas sobre a liberdade humana e sobre fazer o Bem são extremamente presentes. Aproveitando que falei em laicidade, a igreja católica perderá bastante seu poder em contraponto às múltiplas igrejas que aparecerão, cada uma pregando seus próprios códigos de aproximação do Bem supremo. Nessa leitura, fica... 

A: ...Entendo o que você quer trazer. Em minha leitura, eu trouxe que as pessoas menos virtuosas devem seguir as mais, pois desse modo elas seriam guiadas para Deus. Entretanto, em um ambiente de várias ideologias cristãs, fica difícil saber quem é mais virtuoso que quem e imagino que isso virá a causar muita confusão.

A: Claro que eu acompanhei daqui de cima, mas me alegraria ouvir de outro alguém: Quais foram as repercussões de minhas ideias durante e pouco após a minha vida terrena? 

T: Pois bem. Você leu as ideias platônicas, viu que ele defendia a sofocracia, o governo dos virtuosos, e como você trouxe que virtude é a graça divina, os clérigos passaram a serem considerados as pessoas mais virtuosas da terra. Com isso, houve uma sofocracia cristã, em que a virtude não seria despertada nos indivíduos pela razão, e sim pela fé em Deus. Desse modo, as demais pessoas tinham de seguir cegamente a moral cristã que era dita pelos clérigos, só assim, seguindo os iluminados, é que os indivíduos ascenderiam ao gozo eterno. 

A: Eu aqui já conversei um pouco com Platão e ele disse que não era bem esse conceito de sofocracia que ele defendia, não. Ele trouxe que a virtude vinha mais da razão e do autocontrole, mas faz sentido esse ponto de vista de acordo com minhas ideias. Crê-se então que a fé cega deu continuidade à desvalorização da vida humana, certo? 

T: Hei de concordar com você. Ao colocar a fé como virtude, a redenção eterna como o sumo objetivo da vida humana e a possibilidade de se purificar por meio das punições, as pessoas, que já não tinham muito valor à vida própria, passaram a valorizar mais o pós-vida, pagando severamente por seus pecados. 

A: É, meu caro, não sei lhe dizer se os métodos de purificação da época, métodos que contemplavam o autoflagelo e assassinato em praça pública pelas mãos da igreja foi bom ou mal. Em meu tempo, a vida terrena não era valorizada, logo a morte poderia ser um agente de purificação, dados os devidos contextos. Talvez no futuro isso seja condenado, talvez valorizado, a história é um caleidoscópio. 

T: Eu pensei um pouco diferente, para mim as punições corpóreas não deveriam ser aceitas, visto que por ter sido criado por Deus, e por ser o recipiente da vida, o corpo deveria ser valorizado. Entretanto, concordo com a noção de caleidoscópio. Sabe, é bem possível que essa questão da punição venha a ser discutida eternamente pela humanidade. Deus me trouxe que no século XXI haverão países em que apoiarão a pena de morte aos maiores pecadores, bem como as grandes redes de comunicação irão propagar o que se valoriza ser punido. Imagine que as relações sexuais entre homens, que no seu tempo eram permitidas pela igreja, no meu tempo já não eram, e no século XXI ela fica fragmentada, sendo algumas partes dessa comunhão permitidas, e outras passíveis de punição. Como eu disse, haverão múltiplas igrejas no futuro, e grande parte delas irão crer que a união entre homem e mulher é a única que traz as pessoas para perto Dele, sendo a entre homens ou mulheres um pecado voluntário. 

A: Como já me desvencilhei de minha vida térrea, eu não preciso concordar, nem discordar de sua colocação, apenas prevejo que essas interpretações durarão por vários séculos. 

T: Só para rirmos um pouco, Ele me deu essa gravura que mostra um ponto de concordância nosso, de que Deus nos concedeu o livre arbítrio, embora eu tenha defendido a escolha racional, e você a fé. Diga-me, o que achas? 



A: Duas coisas: Fico contente por não ter mais ignorâncias como essa, e que a vida eterna cada vez mais me faz feliz *risos*. 

T: *risos*.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Descartes: distinção entre o certo e o errado?

Por: Mariana Fernanda e Wanessa Gondim


Descartes, pioneiro no pensamento filosófico moderno, aventurou-se nas questões da filosofia, matemática, metafísica e epistemologia tornando seu pensamento extremamente importante para o desenvolvimento científico metodológico. Criou um método universal de uso da razão que pudesse questionar as verdades conhecidas, seguindo uma sequência de verificação, análise, síntese e enumeração. Dessa forma trouxe a ideia de que as evidências da razão são claras, indicando que os nossos sentidos são confusos e nos enganam.
O autor duvida sistematicamente de tudo, dos nossos sentidos, das evidências científicas, no entanto, apenas não contraria a única evidência de sua própria existência, de seu ser pensante: “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo). Com isso iremos trazer algumas reflexões, dúvidas acerca do conflito que é intermediar ações da razão e dos sentimentos, e os julgamentos feitos aos nossos conceitos de certo e errado, ilustraremos com cenas e quadrinhos.
A paixão contradiz a razão? É possível nos guiarmos somente pela razão, desconsiderando as nossas vontades impulsionadas por nossas emoções, sentimentos, paixões? De acordo com Descartes é necessário que nossas vontades sejam guiadas apenas pela razão, assim, evitaríamos o erro, consequência do mau uso de nossos desejos, nossas vontades. A seguir uma cena de Hércules que ilustra um momento em que o herói toma uma decisão baseado em sua paixão pela bela Meg.


Quando somos guiados somente pela nossa emoção, tendemos a não pensar claramente nas consequências de nossas ações e sendo assim as chances de tomarmos uma decisão errada aumentam. Mas será que a razão está sempre certa? No caso de Hércules ele agiu certo ou errado ao salvar a vida de quem amava e colocar em risco a vida de outras pessoas?

Para Descartes as pessoas conhecem o que é certo através de evidências. Tal conhecimento proporciona um aumento na liberdade. Desse modo, com o conhecimento do que é certo, as escolhas se tornariam mais claras, “pois se eu conhecesse sempre claramente o que é verdadeiro e o que é bom, nunca teria dificuldade em deliberar o julgamento e a escolha que deveria fazer, e assim eu seria inteiramente livre sem jamais ser indiferente” (MARCONDES, 2009, p.69).


Mas o que seria o certo e o que seria o errado? Existem somente estes dois caminhos na vida? Levando em consideração a tirinha, o bem é certo e o mal é errado? Descartes vai dizer que é necessário ter “julgamentos firmes e determinados”, baseados na informação dessa dualidade, além de atitudes baseados em fundamentos verdadeiros para que se conduza as ações de forma justa.
Através do nosso pensamento racional, temos um conhecimento natural do que é certo e errado. À medida que nossas vontades guiadas pela razão prevalecem em detrimento das nossas vontades primitivas, nos tornamos mais fortes e conseguimos tomar decisões mais justas, baseadas no conhecimento da verdade. Mas o que é verdade e o que é justiça? A verdade e a justiça são sempre as mesmas? E valem para todas as épocas, culturas e situações?
A seguir uma cena em que há o diálogo entre o padre e o Demolidor, herói que tenta vingar a morte do pai. Nesta cena, qual seria a atitude justa a ser tomada no caso relatado pelo padre? Tirar a vida de alguém pode ser considerado certo e justo?

        
Nós conseguimos estar inteiramente convictos em nossas decisões? Segundo Descartes temos conhecimento do que é certo e por isso deveríamos fazer escolhas justas. Mas então por que nos enganamos? Por que existem ações que não são justas? Por que seguir as paixões se só é possível conceber o que é justo através da razão? Só existe uma forma de racionalizar as situações?
Essa segunda cena de demolidor traz algumas questões. É possível estabelecer uma fronteira, ou existem graus de certo e errado?  Há ações que não são totalmente certas nem totalmente erradas? Ou há somente ações inteiramente certas e inteiramente erradas? É possível que uma ação errada leve a uma consequência correta?


Para Descartes deveríamos preferir mudar os nossos desejos que a ordem mundial, e sermos firmes e resolutos em nossas ações. Mas até que ponto é preferível anular nossos desejos para que a ordem mundial não mude? A sociedade deve permanecer a mesma? Sempre com o mesmo padrão moral e ético?
Muito há que se pensar ainda sobre as definições de certo e errado. Tais conceitos são passíveis de diversas interpretações, dependendo de contextos cultural, histórico, econômico e etc. Restringir esses conceitos a concepções rígidas pode eventualmente acabar gerando vários conflitos tanto internos quanto externos. A seguir é apresentado um último vídeo, o trailer do filme Sniper Americano, que ilustra esse conflito entre a distinção de certo e errado. A partir desse trailer e do que já foi abordado neste texto, uma última reflexão se faz necessária: o que é certo para mim é certo para o outro? E se não for, como devo agir?

Trailer "Sniper Americano" - https://www.youtube.com/watch?v=CJ74sc-NESA


Referências:

MARCONDES, Danilo. Descartes In Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp 67-71.

<MADJAROF, Rosana. A filosofia de Descartes > Disponível em:  http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes.htm Acesso em: 13 de junho de 2015