Por: Isabel
Cristina e Livania Rafaela
No Brasil, a
implementação de políticas afirmativas que visam garantir igualdade de
oportunidade e tratamento para grupos ou indivíduos que, historicamente, foram discriminados,
coincidiu com as lutas internacionais contra a discriminação racial. Foi
mediante a III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (ocorrida em Durban –
África do Sul, no ano de 2001) e o esforço despendido pela ONU referente à
observação dos Direitos Humanos em combate ao racismo que o governo brasileiro
(em referência ao governo FHC década de 1990) reviu, de maneira mais enfática,
a ideia de que a constituição da sociedade brasileira como miscigenada levaria
consequentemente a sua constituição como anti-racista.
No entanto, essa
afirmação foi considerada ingênua e mitológica por parte do governo da época, que
ao realizar uma análise crítica da sociedade concluiu ser a construção das
relações entre brancos e negros fortemente marcadas por atitudes
discriminatórias contra a população negra, tanto em esfera pública como
privada. Em decorrência dessas conclusões, as medidas afirmativas, como exemplo
a chamada "Lei de Cotas", promulgada em 2012, durante o Governo de
Dilma Roussef, foram adotadas como uma “exigência de reconhecimento da
identidade individual e coletiva dos negros e, por isso, de proteção da
dignidade desses indivíduos dentro da sociedade brasileira” (MARCON; FERREIRA;
SERRANO, 2008, p. 36) na tentativa de refletir princípios de igualdade e
justiça racial.
Disto, pode-se
retirar que a instauração dessas políticas afirmativas está pautada na
negação das concepções de democracia racial e ideais antirracistas presentes no
Brasil, no intuito de desfazer a ideia de que no país exista uma igualdade
racial decorrente da sua miscigenação histórica. Contudo, longe de ser um tema
marcado por consensos, é justamente sobre essas concepções que estão os
argumentos tanto dos que se posicionam contrários quanto favoráveis às cotas
raciais, diferenciando-se quando atentam para a questão de “a sociedade
brasileira ser ou não ser racista” (MARCON; FERREIRA; SERRANO, 2008,p. 3).
Dentre os que
defendem as cotas raciais é comum o argumento de que o racismo é o motivo pelo
qual existem desigualdades entre negros e brancos. Para essa posição a
sociedade brasileira está dividida em dois pólos raciais, aos quais denomina
“bicolor”; o negro e o branco. Para além dessa concepção, há ainda o fundamento
de que a relação entre essas duas raças tem sido determinada por um passado de
opressão da negra por parte da branca e no presente, ainda se sente as marcas
dessas relações mediante um preconceito cordial. Nesse ponto, os que são a
favor das cotas denunciam a falsa democracia social e o pensamento “mágico” da
inexistência do racismo no Brasil, tornando explicita a desigualdade racial a
partir da diferenciação das raças, ou seja, não se faz relevante o fato da
miscigenação nacional, mas sim, como afirma Maggie e Fry(2003), o de grupos estanques, onde uns tem mais
privilégios do que outros.
Segundo o senador
Paulo Paim (ARGUMENTO, TVSENADO, 2014) defensor desse sistema, as ações
afirmativas são uma política de inclusão e visam conceder ao seu público-alvo
uma carta de alforria que até hoje não receberam, pois dá “oportunidade para
aqueles que nunca tiveram e dá voz àqueles que nunca tiveram voz através de uma
política que garante que os negros possam ocupar [instituições] públicas”.
Marcos Santos da Silva, coordenador do Movimento Negro Unificado, defende: “as
cotas e ações afirmativas representam uma tática imediata, não podemos esperar
a reforma da educação” (CONSTANTINO, 2006, apud MARCON; FERREIRA; SERRANO,
2008, p. 2), em outras palavras, mesmo considerando a necessidade de uma
reforma na educação, Marcos defende as cotas como medida favorável e eficiente,
ainda que em curto prazo.
Por outro lado, contrários
às cotas afirmam que o racismo não é o motivo das desigualdades sociais entre
brancos e negros, antes acreditam que o fenômeno “existe tanto aqui como em
todo lugar, mas não é, nem de longe, uma marca da nossa identidade nacional”
(KAMEL, 2006, apud MARCON; FERREIRA; SERRANO, 2008, p. 2). De acordo com o
sociólogo Demétrio Magnoli (autor do livro sobre racismo: Uma gota de sangue)
considerar as políticas afirmativas como forma de ressarcir a afrodescendentes
é cair em dois erros fundamentais. O primeiro deles consiste em fazer uma
releitura da história como uma história racial, isto é, é uma proposta para que
se revise a história do Brasil e que se atribua a escravidão e o tráfego de
escravos a uma raça, a branca, contra outra raça, a não-branca. O segundo,
demonstra que dividir os brasileiros segundo critérios raciais significa
beneficiar descentes de escravos, nesse caso pessoas de cor branca são
definidas como representantes do escravismo dos antepassados, aceitando-se
ainda, que essas pessoas devem pagar por um “pecado nacional” do século XIX.
Outros autores
criticam o pensamento que propõe a moldação do presente de negros e brancos
(defendido pelos simpatizantes das cotas) em função das contingências do
passado e ainda planejamento do futuro, expressando uma “injustiça” sobre os
brancos e vitimização dos negros. A alocação da raça não-branca no lugar de
vítima é vista como uma violência
etnocêntrica e que reitera ainda mais o racismo, antes disso, a própria
diferenciação das raças já é. Assim, é possível perceber que as medidas
afirmativas podem concorrer para uma nova forma de discriminação residente no
jogo de privilégios e oportunidades para determinados grupos raciais.
Estudantes protestam
contra a adoção de cotas pelo governo do estado de São Paulo (Foto
agudosquilombo).
Nesse ponto, faz-se
pertinente o pensamento freudiano de que nossas diferenças singulares servem de
pretexto para a agressividade que atinge tudo aquilo que é diferente,
particularmente quando essas diferenças têm suas raízes em terreno cultural ou
social. “A violência dos conflitos identitários de nossos dias incita a “tomar
partido” pelo universal, lembrando que o pensamento freudiano, marcado pelo
Iluminismo, sempre preservou a referência ao universal, indispensável para
pensar a diferença e sustentar uma ética de abertura ao outro” (KOLTAI, 2008).
Esse caráter universalista e equitativo deveria estar pautado, para esta
abordagem, não nas medidas imediatas e sim numa reforma na educação que
possibilidade oportunidades equilibradas para todos, brancos e negros.
Alunos da USP
protestam pedindo cotas na universidade (Foto Agência Brasil)
Por outra parte, fala
a favor da implementação da política de cotas raciais o argumento que diz do
acesso promovido de estudantes negros a Instituições de Ensino Superior
Federal. De acordo com o IBGE, o percentual de negros no ensino superior passou
de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011, ainda houve um crescimento em 200% de
jovens de classe média baixa, entre 18 a 24 anos, com 11 anos ou mais de estudo.
Entretanto, dele
retira-se uma questão bastante relevante: comoi dentificar uma pessoa como
pertencente à raça negra? Um caso ilustrativo para essa problemática foi o
ocorrido em 2003, quando a UEMG (Universidade Estadual do Mato Grosso) lançou
uma estratégia em que a identificação de estudantes negros que poderiam ter
acesso as vagas era feita pela avaliação de fotos dos candidatos. O fenótipo
selecionado para ocupar a vaga era composto por nariz chato, lábios grossos e
cabelo crespo. A medida não foi bem recebida e gerou protesto por parte de
movimentos negros.
Com esse breve exame
de alguns dos argumentos que sustentam posições favoráveis e contrárias às
cotas raciais não se visa – nem seria possível – o esgotamento da discussão que
permeia este tema. Pelo contrário, embora conscientes do alcance limitado deste
trabalho, buscamos chamar atenção para a complexidade envolvida no
desenvolvimento e implementação de ações afirmativas (especialmente o tipo
eleito por objeto de reflexão) refletida na diversidade de pontos de vista
existente. Cremos residir num olhar mais cuidadoso sobre os argumentos
circulantes nesse debate uma boa ferramenta para melhor localizar-se tanto no
plano das ideias quanto no plano social.
Referências
MARCON, G. B. FERREIRA, M. A. e SERRANO,
R H C. As cotas raciais na visão de seus defensores e detratores. Revista Científica do UNIFAE , São
João da Boa Vista, v.2, n.2, 2008
MAREGA,
L. M. P. O sistema de cotas para negros
nas universidades brasileiras como acontecimento discursivo: uma proposta de
análise em AD. In: 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso,
2008, s.l. Disponível em <http://www.dle.uem.br/jied/pdf/O%20SISTEMA%20DE%20COTAS%20PARA%20NEGROS%20marega.pdf>
Acesso em: 08 de jul. de 2015.
MAGGIE,
Y. e FRY, P. A reserva de vagas para negros nas universidade brasileiras. Enfoques, Rio de Janeiro, vol. 1, nº 1,
2002, 93-117. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n50/a08v1850.pdf>
. Acesso em: 08 de jul. de 2015.
Programa:
Argumento. Tv Senado. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=FuEBkhhyXBc>
, Acesso em 08 de jul de 2015.
IBGE:
Censo 2010- Notícias: <http://censo2010.ibge.gov.br/es/noticias-censo?view=noticia&id=1&idnoticia=2268&busca=1&t=sis-2012-acceso-jovenes-negros-y-pardos-la-universidad-triplico-en-diez>Acesso
em 08 de jul de 2015.
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