sexta-feira, 21 de agosto de 2015

(Anti)Racismo e políticas afirmativas: as cotas

Por: Isabel Cristina e Livania Rafaela

No Brasil, a implementação de políticas afirmativas que visam garantir igualdade de oportunidade e tratamento para grupos ou indivíduos que, historicamente, foram discriminados, coincidiu com as lutas internacionais contra a discriminação racial. Foi mediante a III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (ocorrida em Durban – África do Sul, no ano de 2001) e o esforço despendido pela ONU referente à observação dos Direitos Humanos em combate ao racismo que o governo brasileiro (em referência ao governo FHC década de 1990) reviu, de maneira mais enfática, a ideia de que a constituição da sociedade brasileira como miscigenada levaria consequentemente a sua constituição como anti-racista.
No entanto, essa afirmação foi considerada ingênua e mitológica por parte do governo da época, que ao realizar uma análise crítica da sociedade concluiu ser a construção das relações entre brancos e negros fortemente marcadas por atitudes discriminatórias contra a população negra, tanto em esfera pública como privada. Em decorrência dessas conclusões, as medidas afirmativas, como exemplo a chamada "Lei de Cotas", promulgada em 2012, durante o Governo de Dilma Roussef, foram adotadas como uma “exigência de reconhecimento da identidade individual e coletiva dos negros e, por isso, de proteção da dignidade desses indivíduos dentro da sociedade brasileira” (MARCON; FERREIRA; SERRANO, 2008, p. 36) na tentativa de refletir princípios de igualdade e justiça racial.
Disto, pode-se retirar que a instauração dessas políticas afirmativas está pautada na negação das concepções de democracia racial e ideais antirracistas presentes no Brasil, no intuito de desfazer a ideia de que no país exista uma igualdade racial decorrente da sua miscigenação histórica. Contudo, longe de ser um tema marcado por consensos, é justamente sobre essas concepções que estão os argumentos tanto dos que se posicionam contrários quanto favoráveis às cotas raciais, diferenciando-se quando atentam para a questão de “a sociedade brasileira ser ou não ser racista” (MARCON; FERREIRA; SERRANO, 2008,p. 3).
Dentre os que defendem as cotas raciais é comum o argumento de que o racismo é o motivo pelo qual existem desigualdades entre negros e brancos. Para essa posição a sociedade brasileira está dividida em dois pólos raciais, aos quais denomina “bicolor”; o negro e o branco. Para além dessa concepção, há ainda o fundamento de que a relação entre essas duas raças tem sido determinada por um passado de opressão da negra por parte da branca e no presente, ainda se sente as marcas dessas relações mediante um preconceito cordial. Nesse ponto, os que são a favor das cotas denunciam a falsa democracia social e o pensamento “mágico” da inexistência do racismo no Brasil, tornando explicita a desigualdade racial a partir da diferenciação das raças, ou seja, não se faz relevante o fato da miscigenação nacional, mas sim, como afirma Maggie e Fry(2003), o de grupos estanques, onde uns tem mais privilégios do que outros.
Segundo o senador Paulo Paim (ARGUMENTO, TVSENADO, 2014) defensor desse sistema, as ações afirmativas são uma política de inclusão e visam conceder ao seu público-alvo uma carta de alforria que até hoje não receberam, pois dá “oportunidade para aqueles que nunca tiveram e dá voz àqueles que nunca tiveram voz através de uma política que garante que os negros possam ocupar [instituições] públicas”. Marcos Santos da Silva, coordenador do Movimento Negro Unificado, defende: “as cotas e ações afirmativas representam uma tática imediata, não podemos esperar a reforma da educação” (CONSTANTINO, 2006, apud MARCON; FERREIRA; SERRANO, 2008, p. 2), em outras palavras, mesmo considerando a necessidade de uma reforma na educação, Marcos defende as cotas como medida favorável e eficiente, ainda que em curto prazo.
Por outro lado, contrários às cotas afirmam que o racismo não é o motivo das desigualdades sociais entre brancos e negros, antes acreditam que o fenômeno “existe tanto aqui como em todo lugar, mas não é, nem de longe, uma marca da nossa identidade nacional” (KAMEL, 2006, apud MARCON; FERREIRA; SERRANO, 2008, p. 2). De acordo com o sociólogo Demétrio Magnoli (autor do livro sobre racismo: Uma gota de sangue) considerar as políticas afirmativas como forma de ressarcir a afrodescendentes é cair em dois erros fundamentais. O primeiro deles consiste em fazer uma releitura da história como uma história racial, isto é, é uma proposta para que se revise a história do Brasil e que se atribua a escravidão e o tráfego de escravos a uma raça, a branca, contra outra raça, a não-branca. O segundo, demonstra que dividir os brasileiros segundo critérios raciais significa beneficiar descentes de escravos, nesse caso pessoas de cor branca são definidas como representantes do escravismo dos antepassados, aceitando-se ainda, que essas pessoas devem pagar por um “pecado nacional” do século XIX.
Outros autores criticam o pensamento que propõe a moldação do presente de negros e brancos (defendido pelos simpatizantes das cotas) em função das contingências do passado e ainda planejamento do futuro, expressando uma “injustiça” sobre os brancos e vitimização dos negros. A alocação da raça não-branca no lugar de vítima é vista como uma violência etnocêntrica e que reitera ainda mais o racismo, antes disso, a própria diferenciação das raças já é. Assim, é possível perceber que as medidas afirmativas podem concorrer para uma nova forma de discriminação residente no jogo de privilégios e oportunidades para determinados grupos raciais. 

Estudantes protestam contra a adoção de cotas pelo governo do estado de São Paulo (Foto agudosquilombo).

Nesse ponto, faz-se pertinente o pensamento freudiano de que nossas diferenças singulares servem de pretexto para a agressividade que atinge tudo aquilo que é diferente, particularmente quando essas diferenças têm suas raízes em terreno cultural ou social. “A violência dos conflitos identitários de nossos dias incita a “tomar partido” pelo universal, lembrando que o pensamento freudiano, marcado pelo Iluminismo, sempre preservou a referência ao universal, indispensável para pensar a diferença e sustentar uma ética de abertura ao outro” (KOLTAI, 2008). Esse caráter universalista e equitativo deveria estar pautado, para esta abordagem, não nas medidas imediatas e sim numa reforma na educação que possibilidade oportunidades equilibradas para todos, brancos e negros.
Alunos da USP protestam pedindo cotas na universidade (Foto Agência Brasil)
Por outra parte, fala a favor da implementação da política de cotas raciais o argumento que diz do acesso promovido de estudantes negros a Instituições de Ensino Superior Federal. De acordo com o IBGE, o percentual de negros no ensino superior passou de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011, ainda houve um crescimento em 200% de jovens de classe média baixa, entre 18 a 24 anos, com 11 anos ou mais de estudo. 

Entretanto, dele retira-se uma questão bastante relevante: comoi dentificar uma pessoa como pertencente à raça negra? Um caso ilustrativo para essa problemática foi o ocorrido em 2003, quando a UEMG (Universidade Estadual do Mato Grosso) lançou uma estratégia em que a identificação de estudantes negros que poderiam ter acesso as vagas era feita pela avaliação de fotos dos candidatos. O fenótipo selecionado para ocupar a vaga era composto por nariz chato, lábios grossos e cabelo crespo. A medida não foi bem recebida e gerou protesto por parte de movimentos negros.
Com esse breve exame de alguns dos argumentos que sustentam posições favoráveis e contrárias às cotas raciais não se visa – nem seria possível – o esgotamento da discussão que permeia este tema. Pelo contrário, embora conscientes do alcance limitado deste trabalho, buscamos chamar atenção para a complexidade envolvida no desenvolvimento e implementação de ações afirmativas (especialmente o tipo eleito por objeto de reflexão) refletida na diversidade de pontos de vista existente. Cremos residir num olhar mais cuidadoso sobre os argumentos circulantes nesse debate uma boa ferramenta para melhor localizar-se tanto no plano das ideias quanto no plano social.

Referências

MARCON, G. B. FERREIRA, M. A. e SERRANO, R H C. As cotas raciais na visão de seus defensores e detratores. Revista Científica do UNIFAE , São João da Boa Vista, v.2, n.2, 2008

MAREGA, L. M. P. O sistema de cotas para negros nas universidades brasileiras como acontecimento discursivo: uma proposta de análise em AD. In: 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso, 2008, s.l. Disponível em  <http://www.dle.uem.br/jied/pdf/O%20SISTEMA%20DE%20COTAS%20PARA%20NEGROS%20marega.pdf> Acesso em: 08 de jul. de 2015.

MAGGIE, Y. e FRY, P. A reserva de vagas para negros nas universidade brasileiras. Enfoques, Rio de Janeiro, vol. 1, nº 1, 2002, 93-117. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n50/a08v1850.pdf> . Acesso em: 08 de jul. de 2015.

Programa: Argumento. Tv Senado. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=FuEBkhhyXBc> , Acesso em 08 de jul de 2015.






Nenhum comentário:

Postar um comentário