Por: Alina Coriolano e Phagner Ramos
Em
novelas, filmes e séries é comum encontrar personagens, conhecidos como vilões,
que agem com extrema maldade e que cometem as piores crueldades, enquanto
outros personagens, os mocinhos, são postos como o bem e a pureza em sua
totalidade. Quase que intuitivamente, abre-se uma distância entre aqueles que
são tidos como bons e aqueles que são tidos como maus, servindo de espelho para
as concepções empregadas no cotidiano.
“Pessoas
más” são sempre citadas como aquelas que cometeram assassinatos e torturas, por
exemplo, de modo a gerar uma inquietação nas “pessoas de bem” que não conseguem
entender tais atos: “Como essas pessoas podem ser tão más?”, “Ele não é um ser
humano, é um monstro!”. Parece tão simples e fácil imaginar que as pessoas que
têm um comportamento muito desviante como este são loucas, insanas, psicopatas,
tudo junto ou simplesmente más, de modo que, estas categorias parecem distantes
de nós, boas pessoas.
Ao
questionar-se ou propor-se a estudar a respeito de ética e direitos humanos,
parece inevitável refletir sobre certo e errado e, consequentemente sobre a
dicotomia bem/mal. As concepções de bem e mal, sendo resultado de uma
construção social, estão sempre relacionadas a questões éticas e morais ou aos
desvios destas.
O
mal e o bem sempre foram temas da reflexão humana e, de forma especial, na
Idade Média, período fortemente marcado pela religião, quando Tomás de Aquino buscou
explicar o tema através da ideologia cristã. Assim como Agostinho, Aquino partia
do pressuposto da cristandade, colocando Deus em um ponto central da discussão
e declarando que algumas coisas não poderiam ser explicadas, pois fariam parte
de uma verdade que não nos é acessível.
Apesar
disso, Aquino aprofunda-se neste questionamento e afirma que o mal não é uma
pessoa em si, muito menos alguém que nasceria literalmente “má”, já que todos
são filhos de Deus, o Supremo Bem, e d’Ele nenhum mal se gera; mas podem
ocorrer falhas nesse “bem” criado por Deus o que originaria o mal, que, ainda assim,
geraria um bem maior (MARCONDES, 2007).
Passados
alguns séculos desde estas reflexões, descobre-se que durante a Segunda Guerra
Mundial foram realizadas experiências cruéis com seres humanos envolvendo práticas
de congelamento e testes de subnutrição, por exemplo. Conforme explicitado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948, p.02), “considerando que o desprezo
e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que
ultrajaram a consciência da Humanidade” deram-se início a medidas que evitassem
que atos como estes ocorressem novamente. Dentre elas, estão a própria
Declaração Universal dos Direitos Humanos e inúmeras pesquisas de cunho social.
Impactando
o mundo com estes acontecimentos, sempre em diálogo com a teoria kantiana,
Hannah Arendt acreditava em “uma distinção entre o certo e o errado, e essa é
uma distinção absoluta. [...] Todo ser humano em sã consciência é capaz dessa
distinção” (ARENDT, 2008 apud KELSON, 2011, p.59). Diante da oportunidade de
acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann, responsável pela logística de
deportação para os campos de extermínio, Arendt depara-se com um homem que se
declara inocente, sem arrependimentos e que afirma apenas ter agido conforme as
ordens que lhe foram dadas.
Após
o fim do julgamento, Arendt pontua “a ideia de que o mal não é exercido apenas
por fanáticos ou sociopatas, mas também por pessoas comuns que, acatando ordens
superiores, cometem atos abjetos que, em dado contexto, consideraram ‘normais’”
(STORINO, 2013, p. 07). Kelson explica ainda sobre esta experiência que:
Analisando
Eichmann e os crimes nazistas, esta ausência de pensamento não representava
estupidez e tampouco esquecimento dos costumes e hábitos morais e éticos
apreendidos e que “nada tinha a ver com as assim chamadas decisões éticas ou
assuntos de consciência”. Esta lhe parecia uma dimensão do fenômeno do mal sem
precedentes na história do pensamento tradicional. A Banalidade do Mal seria um
mal que não tem necessariamente raízes nem na natureza humana nem em motivos
maus, mas na ausência de raízes e pensamento (2011, p.65).
Intrigado
com os achados e colocações de Arendt, Stanley Milgram realizou um experimento
para averiguar se, em plena capacidade mental, pessoas comuns obedeceriam a
ordens ainda que estas chegassem a prejudicar outro ser humano (neste caso,
através da aplicação de choques elétricos de voltagens cada vez maiores em
“alunos” que respondessem diferente das respostas esperadas pelos
pesquisadores). Foram usadas diversas variáveis e, diferentemente do esperado,
65% dos participantes chegou a dar choques de 450 volts enquanto os
"alunos" imploravam para que eles parassem (GARCIA-MARQUES, 2002). Chocando
o mundo ao mostrar que cidadãos americanos comuns seriam capazes de cometer
atrocidades, Milgram parece reforçar o defendido por Arendt de que a maldade
não é algo restrito a certas categorias sociais.
Como
Milgram, houve outros pesquisadores que tiveram achados surpreendentes e até
assustadores por parecerem comparáveis a acontecimentos terríveis da história
da humanidade. Questionado porque pessoas comuns e tidas como boas são capazes
de cometer atrocidades que nunca haviam imaginado, o que ocorreria com estas
pessoas para tornarem-se capazes de cometer estes atos, onde localiza-se a
linha que separa bem e mal, Philip Zimbardorealiza recorreu à mundialmente
conhecida Experiência da Prisão de Stanford (MANSO-PINTO, 2011).
Assim,
o experimento deu início quando 70 candidatos responderam um anúncio de jornal
para participar de uma pesquisa sobre os efeitos psicológicos da vida
prisional. Cuidadosamente selecionados, os candidatos eram do sexo masculino,
universitários, sem indícios de problemas psicológicos e de saúde, sem
histórico de abuso de drogas ou de atividades criminais e de classe média.
Diante
isto, estes estudantes foram colocados numa prisão simulada como carcereiros e prisioneiros
mediante sorteio com base no lançamento de uma moeda ao ar. Apesar de previsto
para durar duas semanas, o experimento foi encerrado após apenas alguns dias
devido a ocorrência de humilhação, tortura psicológica e física cometidas
durante o tempo decorrido do estudo. Através deste experimento, Zimbardo cria a
teoria do Efeito Lúcifer (do original inglês, The Lucifer Effect). Pontes e
Brito explicam a teoria, em que:
A emergência de ações malignas
perpetradas por indivíduos racionais, sadios e conscientes de desempenhar um
papel que lhes foi prescrito deve ser compreendida a partir de um conjunto de
fatores estruturais determinantes que definem através de sua força persuasiva
as ações de cada indivíduo inserido nessa situação específica. As ações
individuais são consideradas fruto de um contexto situacional extremo, onde
tanto fatores ambientais imediatos quanto elementos psicológicos desembocam
numa ação maligna inesperada (2014, p.388).
Essas
colocações parecem corroborar com os achados de Arendt e Milgram, pois explicam
a má conduta através de contextos específicos de “sistemas maus”. Assim, a
maldade parece não ser uma escolha individual, mas produto de demandas externas
de modo que, perante a obediência e a conformidade em situações que implicam em
sobrevivência, os indivíduos podem ser levados a ações que não condizem com o
que é considerado normal em outros contextos, conforme exposto por Pontes e
Brito (2014).
Decorridos
mais de trinta anos do experimento, soldados americanos cometiam inúmeros atos
de humilhação e tortura no Centro de Inteligência e Prisão Militar de Abu
Ghraib onde eram mantidos prisioneiros de guerra no Iraque, caso que o
Pentágono justifica como “maçãs ruins numa cesta de boas maçãs”. De modo a
perceber que o assunto não é tema do passado.
Apesar
da grande notoriedade e impacto das contribuições trazidas pelos autores
supracitados, estas demonstram ainda a fundamental relevância de considerar as
características individuais de cada pessoa e a subjetividade destas de modo que,
conforme percebido no estudo de Milgram, algumas se recusaram a prosseguir com
o experimento e, durante o Holocausto houve também pessoas que abrigaram e
ajudaram na fuga dos perseguidos. Assim, parece falho dizer que as demandas
estabelecidas por forças superiores e contextos específicos atinge a todos de
maneira igual e estável sem perda e/ou dissipação (PONTES; BRITO, 2014).
Outra
crítica à abordagem do mal como fruto de uma situação, vem de Erich Fromm que
propõe uma abordagem com aprofundamento do contexto histórico e considerando
elementos diversos, dentre eles social, cultural, afetivo, econômico e político
já que o mal possui um caráter social diferente conforme o tempo (PONTES;
BRITO, 2014). Compara-se assim que Zimbardo parece fundamentar sua perspectiva
numa única situação e contexto específico para explicar este complexo fenômeno.
Perante isto, Fromm:
Oferece
uma alternativa psicológica e sociológica para a compreensão de certos traços
morais presentes no mundo contemporâneo que podem nos ajudar a sistematizar e
compreender a permanência do mal como fruto do desenvolvimento de um caráter
social dissociativo, com tendências ao autoritarismo e a rendição da liberdade
individual como mecanismo de fuga num mundo de sofrimento e solidão. Dessa
maneira, podemos considerar o conceito de caráter social como alternativa que
traz em si o aspecto histórico necessário para compreensão do mal como
categoria permanente nas ações humanas no mundo contemporâneo (PONTES; BRITO,
2014, p.388-389).
Em
contrapartida, outras teorias fortalecem-se em explicações a nível individual
de modo que, fundamentam-se nos achados do material genético humano e lesões
e/ou disfunções em áreas cerebrais específicas. Diante isto, iniciaram-se pesquisas
averiguando a estrutura e o funcionamento do cérebro de assassinos e de pessoas
consideradas “não-violentas”. Os achados indicam que o córtex pré-frontal (parte
cerebral onde nascem as emoções agressivas) dos assassinos funciona de maneira
precária sendo esta a justificativa para este tipo de comportamento já que
haveriam problemas no controle e regulação de partes do cérebro que são mais primitivas
(PACHECO, 2011).
Além
desses achados, contribuições do campo da genética demonstram que o gene da
enzima monoamina oxidase A (MAO A) e o neurotransmissor serotonina são
responsáveis por controlar dentre outras coisas, a impulsividade e a
agressividade. De modo que a baixa da serotonina tende a implicar em
comportamentos mais violentos, conforme os resultados encontrados em diversos
experimentos:
Tais
pesquisas buscam encontrar fatores genéticos que influenciam o desenvolvimento
anômalo de enzimas e neurotransmissores capazes de explicar diversos tipos de
transtornos psiquiátricos, tanto de conduta, déficit de atenção e hiperatividade,
quanto de depressões e ansiedades infantis (PACHECO, 2011, p.115).
Popularmente
conhecidas, as doenças mentais também são um dos argumentos comumente
utilizados para explicar o cometimento de atos considerados maldosos, apesar de
grande parte das pesquisas internacionais apontar que estas conclusões não
correspondem a maioria dos casos. Em contrapartida, no Brasil:
Em um
estudo numa comunidade de baixa renda, Flores et al. (2002) mostraram que,
devido às dificuldades para obter atendimento para problemas de saúde,
especialmente mental, as famílias em situação de indigência social ficavam
presas em um círculo no qual a violência familiar aumentava o risco de doença
mental na família, que por sua vez levava a vários comportamentos desadaptativos,
predispondo a nova geração a maior risco de envolvimento em violência e maior
risco de desenvolver doenças mentais (FLORES, 2002, p.200).
As
concepções e estudos sobre a maldade indagam sobre como agimos e pensamos, nos
fazem refletir se há uma distância muito grande entre as pessoas ditas boas e
as ditas más e questionam ainda se há validade nesta distinção de modo que,
ainda há muito a se refletir e pesquisar sobre esta temática já que, com base
nestes achados, o mal e o bem não estão tão claros e distantes parecendo
necessitar de referências externas para nortear-se. Perante isto, concordamos com
Zimbardo (2007 apud MANSO-PINTO, 2011, p.137) ao afirmar que “una de las más
grandes ventajas que posee la especie humana es su capacidad para explorar y
comprender el mundo social que ha creado y para aplicar lo que de ello aprende
a mejorar la vida”.
REFERÊNCIAS
FLORES, Renato
Zamora. A biologia na violência. Ciênc. saúde coletiva, São Paulo ,
v. 7, n. 1, p. 197-202, 2002
.
GARCIA-MARQUES,
L. O inferno são os outros: o estudo da influência social. In: VALA, J.; MONTEIRO;
M. B. (Coord.). Psicologia Social. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2002,
p.227-292.
KELSON, Ruth. Hannah
Arendt e o âmbito do conceito de Banalidade do Mal. 2011. 145f. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião). Pontífica Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo.
MANSO-PINTO,
Juan. The LuciferEffect. ActualidadesenPsicología, v. 22, n. 109, p. 135-137,
2011.
MARCONDES,
Danilo. Textos Básicos de Ética: De Platão a Foucault. Ed. 5, 2007.
ONU.
Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos.
1948. Disponível em <
http://www.dudh.org.br/wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em
05/7/2015.
PACHECO, Pedro
José. Pesquisas do cérebro e psicopatias: a potencialidade do criminoso
justificada por saberes científicos. 2011. 255f. Tese (Doutorado em Psicologia). Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
PONTES,
Nicole; BRITO, Simone. “Contra o efeito Lúcifer: esboço para uma teoria
sociológica do mal”. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 13,
n. 39, pp. 384-398, dezembro de 2014.
STORINO, Fabio
F. Eichmann na Paulista. Página 22, n. 76, p. 7.