quarta-feira, 22 de julho de 2015

Diálogos éticos no além cristão

Por: Danilo P. Telles de Menezes


   Santo Agostinho passou 844 da pós-vida dele, lá no firmamento, esporadicamente lembrando-se de sua vida terrena, de como saiu da igreja ortodoxa para a cristã ocidental e como foi importante para a criação do pensamento medieval. Certo dia, um recém chegado veio conversar com ele, lhe dizendo que havia lido alguma coisa de suas ideias. Feliz por encontrar alguém que conheceu seus pensamentos térreos, Agostinho iniciou uma leve discussão com o recém iluminado pela graça divina. 

Agostinho: Como você se chama mesmo, meu caro? 

Tomás: Me chamo Tomás, Tomás de Aquino, e como você eu fui um dos filósofos da igreja.

A: Ah... meus tempos de igreja, obviamente não foram tão bons como os que eu tenho por aqui, mas me renderam boas ideias. Conte-me, as crenças maniqueístas continuam presentes? 

T: Refresque-me a memória, Aquino, o que seria o maniqueísmo? 

A: Era a crença vigente nos meus tempos eclesiásticos. Por ela o Bem e o Mal se equiparavam e viviam eternamente em conflito. 

T: Agora me lembro. Do início de sua carreira até os meus tempos terrenos muita coisa na igreja mudou. Você conseguiu desconstruir essa crença, colocou o Bem como substância do real, ao passo que o Mal é a privação dele, ou como você diria, do querer divino. Parabéns, meu caro, claro que daqui de cima você deve ter visto isso tudo, mas seu pensamento foi extremamente relevante. Eu conversei um pouco, logo quando cheguei aqui com o Todo Poderoso e ele me trouxe algumas ideias sobre como as pessoas irão se lembrar de nós, e elas irão lembrar de você como o fundador do pensamento cristão medieval, aquele que deu unidade à igreja. 

A: Nossa, fiquei curioso, daqui a um tempo irei perguntar a Ele sobre seus futuros desejos para com a Terra. Que bom que fui e serei tão importante para o mundo, mas me diga: Eu cheguei à conclusão que o Mal é a privação do Bem, porém caí na cilada de não saber responder sobre a origem do Mal, como ficou isso em seu tempo? 

T: Que o Mal é privação do Bem também esteve em minha concordância, mas vi Deus como o ser perfeito, e como só coube a ele ser perfeito e criador, suas crias haveriam de ter imperfeições. 

A: Muito interessante essa ideia. Para mim, pelo fato do Mal não existir, ficamos temendo, indagando sobre como que ele se manifesta, como que penetra no Bem. Me pareceu que o Mal era mais opressivo por não existir do que se fosse substância. Não nos focaremos tanto nesse assunto agora, já que  Ele me concedeu Sua graça, me esclarecendo muitas coisas. Me diga então, Tomás, você que leu algo sobre mim deve ter lido algo sobre o livre arbítrio, o que achou?  

T: Agostinho, Agostinho, parece que refletimos sobre muita coisa parecida, porém em óticas diferentes, você foi um platonista cristão, eu fui um aristotélico cristão, claro que teremos nossas discordâncias. Você trouxe que Deus concedeu o livre arbítrio ao homem como forma de romper com o determinismo existente nos animais. Ficou claro que se o Homem tendesse, por sua natureza, ao Mal, ele não poderia ser culpabilizado por seus erros, já que Deus o criou para tal. Dessa forma você trouxe que as pessoas que se aproximam do Bem deveriam ser recompensadas, ao passo que as que fazem o Mal deveriam ser punidas. Complementando isso, você pensou também que por Deus ser o Bem supremo tudo que ele cria deve ter algo bom, e como o defeito é voluntário, aquele que cai no pecado pode voltar a ser bom. Sabe das repercussões que essa ideia permeará? 

A: Está falando ainda de sua conversa com Ele? Ainda não, mas com prazer poderei as ouvir. 

T: Daqui a uns seiscentos anos, haverão países considerados laicos e democráticos que entrarão em diversos embates sobre o que é bom para ser replicado nessas sociedades, e sobre o que deve ser proibido. Um exemplo disso é a prática do aborto voluntário, que em sua época de vida já era condenado pela igreja. Do Século III ao XXI os países cristãos irão, em maioria, proibir o aborto por conta dele ser um atentado à vida humana. A questão que fica é: a partir de que momento que a vida humana surge? Além disso, pegando seus ideais de livre arbítrio e Bem e Mal, uma mulher que aborte estará sempre se distanciando de Deus? E quanto aos casos específicos de violência, natimortos e outros sofrimentos envolvidos nas mais diversas gravidezes? Mesmo com esses países se dizendo laicos, essas questões religiosas sobre a liberdade humana e sobre fazer o Bem são extremamente presentes. Aproveitando que falei em laicidade, a igreja católica perderá bastante seu poder em contraponto às múltiplas igrejas que aparecerão, cada uma pregando seus próprios códigos de aproximação do Bem supremo. Nessa leitura, fica... 

A: ...Entendo o que você quer trazer. Em minha leitura, eu trouxe que as pessoas menos virtuosas devem seguir as mais, pois desse modo elas seriam guiadas para Deus. Entretanto, em um ambiente de várias ideologias cristãs, fica difícil saber quem é mais virtuoso que quem e imagino que isso virá a causar muita confusão.

A: Claro que eu acompanhei daqui de cima, mas me alegraria ouvir de outro alguém: Quais foram as repercussões de minhas ideias durante e pouco após a minha vida terrena? 

T: Pois bem. Você leu as ideias platônicas, viu que ele defendia a sofocracia, o governo dos virtuosos, e como você trouxe que virtude é a graça divina, os clérigos passaram a serem considerados as pessoas mais virtuosas da terra. Com isso, houve uma sofocracia cristã, em que a virtude não seria despertada nos indivíduos pela razão, e sim pela fé em Deus. Desse modo, as demais pessoas tinham de seguir cegamente a moral cristã que era dita pelos clérigos, só assim, seguindo os iluminados, é que os indivíduos ascenderiam ao gozo eterno. 

A: Eu aqui já conversei um pouco com Platão e ele disse que não era bem esse conceito de sofocracia que ele defendia, não. Ele trouxe que a virtude vinha mais da razão e do autocontrole, mas faz sentido esse ponto de vista de acordo com minhas ideias. Crê-se então que a fé cega deu continuidade à desvalorização da vida humana, certo? 

T: Hei de concordar com você. Ao colocar a fé como virtude, a redenção eterna como o sumo objetivo da vida humana e a possibilidade de se purificar por meio das punições, as pessoas, que já não tinham muito valor à vida própria, passaram a valorizar mais o pós-vida, pagando severamente por seus pecados. 

A: É, meu caro, não sei lhe dizer se os métodos de purificação da época, métodos que contemplavam o autoflagelo e assassinato em praça pública pelas mãos da igreja foi bom ou mal. Em meu tempo, a vida terrena não era valorizada, logo a morte poderia ser um agente de purificação, dados os devidos contextos. Talvez no futuro isso seja condenado, talvez valorizado, a história é um caleidoscópio. 

T: Eu pensei um pouco diferente, para mim as punições corpóreas não deveriam ser aceitas, visto que por ter sido criado por Deus, e por ser o recipiente da vida, o corpo deveria ser valorizado. Entretanto, concordo com a noção de caleidoscópio. Sabe, é bem possível que essa questão da punição venha a ser discutida eternamente pela humanidade. Deus me trouxe que no século XXI haverão países em que apoiarão a pena de morte aos maiores pecadores, bem como as grandes redes de comunicação irão propagar o que se valoriza ser punido. Imagine que as relações sexuais entre homens, que no seu tempo eram permitidas pela igreja, no meu tempo já não eram, e no século XXI ela fica fragmentada, sendo algumas partes dessa comunhão permitidas, e outras passíveis de punição. Como eu disse, haverão múltiplas igrejas no futuro, e grande parte delas irão crer que a união entre homem e mulher é a única que traz as pessoas para perto Dele, sendo a entre homens ou mulheres um pecado voluntário. 

A: Como já me desvencilhei de minha vida térrea, eu não preciso concordar, nem discordar de sua colocação, apenas prevejo que essas interpretações durarão por vários séculos. 

T: Só para rirmos um pouco, Ele me deu essa gravura que mostra um ponto de concordância nosso, de que Deus nos concedeu o livre arbítrio, embora eu tenha defendido a escolha racional, e você a fé. Diga-me, o que achas? 



A: Duas coisas: Fico contente por não ter mais ignorâncias como essa, e que a vida eterna cada vez mais me faz feliz *risos*. 

T: *risos*.

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