quinta-feira, 12 de março de 2015

Reflexão sobre a diminuição da maioridade penal à luz da ética de Stuart Mill

Por: Layna Marins, Marina Cursino e Rebeca Sobreira.

Um dos temas que gera mais polêmica na sociedade brasileira atual é a discussão sobre a diminuição da maioridade penal. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8.069), substituinte do Código de Menores (Lei nº 6.697/79), foi criado em 13 de julho de 1990 e considera criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade (ECA, 1990). Sendo assim, a idade mínima para maioridade penal é prevista pelo ECA como sendo de 18 anos.
Atualmente se constata evolução crescente do número de adolescentes na prática de atitudes criminosas, os quais já não mais se limitam ao cometimento de pequenos delitos. Nesse sentido, as pessoas que se posicionam em prol da diminuição da maioridade penal, dentre seus argumentos, ressaltam que, frente às mudanças e avanços tecno-científicos do século XXI, o menor entre 16 e 18 anos é visto como pessoa capaz de entender as consequências de seus atos, podendo assim ser submetido às sanções de ordem penal (JORGE, 2002).
Somando-se a isso, aos maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, são conferidos lucidez e discernimento na tomada de decisões no âmbito da capacidade eleitoral ativa, conforme está expresso no artigo 14, § 1º, inciso II, alínea c, da Magna Carta (JORGE, 2002).



Em contrapartida, aqueles que defendem a atual vigência da lei em relação à maioridade penal, baseados no artigo 228 da Constituição Federal, afirmam que o indivíduo menor de 18 anos não possui desenvolvimento mental completo para compreender o caráter ilícito de seus atos, ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Como ato infracional entende-se “toda ação ou omissão consciente e voluntária, que, estando previamente definida em lei, cria um risco juridicamente proibido e relevante a bens jurídicos considerados fundamentais para a paz e o convívio social” (André Estefam e Victor Gonçalves, 2012, p. 312 apud Couto, 2014).
Corroborando com essa visão, os cientistas comportamentais e neurocientistas se apoiam na tese do ser humano em desenvolvimento, isto é, certas estruturas cerebrais não estão maturadas o suficiente para responsabilizar o indivíduo por atos infratores (CUNHA; ROPELATO; ALVES, 2006).
Atualmente, a discussão em torno do tema da maioridade penal se situa em dois polos previamente apresentados: aqueles que querem a redução da maioridade penal e os que optam pela permanência da lei vigente. Enveredando pela ética utilitarista de Stuart Mill, nos perguntamos: a quem é útil a diminuição da maioridade penal? Estaria isso de acordo com o Princípio da Máxima Felicidade, defendido filósofo inglês Stuart Mill?
O princípio básico das reflexões de ética desse filósofo é o do utilitarismo. Esse princípio universal coloca o útil como algo que contribui para o bem estar geral, e o bem seria colocado como algo que reduz o sofrimento e a dor, aumentando o benefício. Desse modo, as ações éticas seriam aquelas que trariam benefício para o maior número de pessoas, podendo, assim, ser tomada como uma ética das consequências, pois uma ação é avaliada como ética de acordo com as consequências ou resultados gerados por ela (MARCONDES, 2007).
Marcondes (2007) ainda aponta que a lógica utilitarista se encontra no sentido de fazer aos outros aquilo que queremos que seja feito a nós, isto é, na busca da felicidade máxima, o interesse de cada indivíduo deve estar em harmonia com o da totalidade. Para isso, é necessário que os indivíduos tomem o seu bem-estar a partir do bem-estar de todos. A felicidade que é alcançada a partir do bem comum estaria ligada às condutas humanas, sendo, portanto, a busca pela felicidade individual algo que iria contra esse bem, gerando uma conduta negativa (MARCONDES, 2007).
O Brasil é um país tipicamente capitalista. Dentre as consequências do capitalismo, duas se destacam na condição estrutural da sociedade: a desigualdade e a individualidade. A desigualdade se expressa nas condições de vida precárias e na privação de direitos básicos. Tal fenômeno contribui diretamente para a individualidade, isto é, o pensamento voltado para a satisfação dos desejos e necessidades individuais.
 Essa lógica capitalista em que estamos inseridos, não se encaixa, portanto, no perfil ético proposto por Mill, pois, ainda que se alcançasse a felicidade, como ele propunha, essa felicidade não estaria ligada às condutas humanas no sentido de promover o bem-estar coletivo. Ao contrário, a felicidade apresentada pelo capitalismo é uma felicidade individual, associada à satisfação de desejos e necessidades individuais do consumo, o que vai de encontro aos pensamentos do filósofo inglês.
A desigualdade social supracitada contribui ainda para a organização de classes hierárquicas. Aqueles que possuem o poder econômico se situam no topo da hierarquia social e têm os seus interesses sobrepostos aos das pessoas com menor acesso financeiro. Esses indivíduos, localizados na base da hierarquia, possuem seus direitos muitas vezes subtraídos pelos que possuem poder econômico e, por isso, desfrutam de privilégios políticos e sociais.
Enquanto que o sujeito de classe social favorecida tem todo o seu desenvolvimento regado de proteção e cuidado, aqueles de classes sociais mais baixas desde cedo buscam a independência por estarem, de certo modo, desamparados. Uma das alternativas encontradas pelas pessoas de baixa renda é a criminalidade que, apresentando altas taxas, contribui com a superlotação dos presídios e de Centros de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (fundação CASA, antigamente denominada FEBEM).
 No âmbito da discussão em pauta, poderíamos supor que caso diminuída a maioridade, a situação não seria tão diferente do que foi exposto: os jovens de classe social favorecida continuariam tendo regalias em seu julgamento e penalização, enquanto que aqueles menos favorecidos seriam julgados e encaminhados para fundação CASA. Ou seja, uma lei que deveria servir à população geral continuaria valendo apenas para aqueles que se encontram desamparados socialmente. Isso iria mais uma vez em sentido contrário à proposta de Stuart de que o bem-estar coletivo deveria se sobrepor ao individual do mesmo modo que o prazer geral deveria se sobrepor à dor.

A partir da realidade que vivemos, notamos que essa discussão da diminuição da maioridade está relacionada à ética das consequências, trazida por Mill. Essa concepção, que avalia o caráter ético de uma atitude a partir do ponto de vista de suas consequências ou resultados, está imbricada na discussão da redução da maioridade penal, já que essa questão pode ser refletida a partir de suas possíveis consequências.
Ao invés do bem comum e de uma felicidade máxima, como propõe o pensamento de Mill, a diminuição da maioridade penal levaria a continuação de um ciclo vicioso, em que os indivíduos entrariam cada vez mais jovens no mundo do crime. Devido à péssima infra-estrutura penitenciária e à fraca política de ressocialização vigente no país, as possibilidades desses jovens alcançarem um pensamento de bem comum coletivo se estreitariam ainda mais. Isto porque somos cidadãos e cidadãs em um país utilitarista marcado pela desigualdade social, em que se busca a satisfação de desejos e vontades individuais, e, para satisfazê-las, hábitos de autoconsciência e autoinspeção para se pensar o bem comum são praticamente inexistentes.
Ao longo de nossa reflexão é notável que a diminuição da maioridade penal não é uma questão em si. Existem nuances a serem melhor entendidas, existe algo de mascarado e velado em nosso estado democrático utilitarista que não aplica a proposta de bem comum a todos e todas, havendo, inclusive, diferença nas formas de se executar uma sanção judicial.
Um exemplo clareador é o caso da jornalista Rachel Sheherazade que, em notícia do dia 5 de fevereiro de 2014, veiculada no Jornal do SBT, comentou sobre um o grupo que espancou e prendeu a um poste um adolescente acusado de furto. Seus comentários foram na direção de defesa do grupo que praticou tal ato, referenciando-se ao adolescente como “maginalzinho”. Já em notícia versada a respeito da agressão praticada pelo cantor Justin Bieber, a mesma jornalista se posiciona de modo contrário à medida punitiva que foi empregada ao artista (prisão), acrescentando que ele está em processo de crescimento e devemos relevar isso.
Essa breve ilustração nos chama atenção pela diferença de discurso produzido vindo uma figura pública que deveria, de acordo com o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, limitar-se a transmissão da notícia, sem impor ou expressar sua opinião pessoal. Com isso, ressalta-se o triste fato de que mudam os discursos quando muda o poder econômico dos sujeitos envolvido. E não só os discursos são alterados, como também as medidas aplicadas para sancionar um ato infrator.
O que fica desta reflexão é um convite a pensar o que, enquanto cidadãos e cidadãs, estamos reproduzindo em nossa sociedade que se diz democrática e regida pelo Princípio da Máxima Felicidade, abordado por Mill. A prática de pensar pode nos levar não só a uma mudança no âmbito particular (o que posso mudar em minha vida privada), como também a um reposicionamento diante de questões sociais, a enxergar de modo diferente o Brasil (e consequentemente a construção e aplicação de leis e políticas públicas) em que vivemos. Consideramos, por fim, que esta reflexão não está encerrada, abrindo-se, portanto, um leque a futuros “repensares”. Há muito mais o que ver no “homem por trás dos óculos e do bigode”, como já dizia o poeta Drummond, no Poema de sete faces.




Referências

COUTO, Leonardo Martins. Aspectos Penais do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e do Estatuto da Juventude. JusBrasil: 2014. Disponível em http://leonardomartinscouto.jusbrasil.com.br/artigos/145193790/aspectos-penais-do-eca-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-e-do-estatuto-da-juventude?ref=topic_feed. Último acesso em 15 de outubro de 2014

 

CUNHA, Paula Inez; ROPELATO, Raphaella; ALVES, Marina Pires. A redução da maioridade penal: questões teóricas e empíricas. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 26, n. 4, Dec. 2006.  Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932006000400011&lng=en&nrm=iso>. access on 01 Dec. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932006000400011.

 

JORGE, Éder. Redução da maioridade penal. Jus Navigandi, Teresina, ano 7 (2002). Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3374. Último acesso em 15 de outubro de 2014.

MARCONDES, Danilo. Stuart Mill In Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp 116-120.

MARCONDES, Danilo. Kant In Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp 86-93.


Links usados para notícia sobre Justin Bieber versus notícia sobre o adolescente agredido:


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