segunda-feira, 2 de março de 2015

A homossexualidade como desvio: uma problemática histórica

Por: Jucinara Rodrigues e Maria Eduarda Santos

“Carlos e André mantém relações sexuais às escondidas, todas as noites André pula o muro da casa de Carlos para passarem a noite juntos. Essa relação já dura alguns anos. Eles não querem que ninguém saiba sobre isso porque eles são homens muito influentes na cidade e não gostariam de acabar fazendo tratamento psiquiátrico. No sec. XVII foram registadas 4.419 denúncias de sodomia no Brasil com punições severas, mas no momento desse relacionamento aqui descrito, no século XIX, as coisas mudaram um pouco... Carlos e André são considerados perversos, seres anormais que despertam o interesse da psiquiatria. E hoje? Como eles seriam tratados?”
No livro “A história da sexualidade: a vontade de saber” Foucault traça uma linha genealógica que nos mostra como o discurso sobre a sexualidade vem sendo multiplicado em nossa sociedade através de práticas confessionárias, seja no âmbito religioso, acadêmico ou médico. Mas como a multiplicação desse discurso passa na modernidade, a dar origem aos conceitos de “normal” e “patológico” dentro do âmbito da sexualidade? Como chegamos à conclusão do que é uma perversão?
Vamos começar nossa história fazendo uma viagem no tempo; voltando, chegaremos à Grécia Antiga. Nesse contexto, práticas sexuais entre dois homens aconteciam abertamente à sociedade; os mais velhos mantinham práticas com os mais novos a fim de passar aos jovens conhecimentos sobre a filosofia, o amor e a moral. Apesar das restrições (apenas relações de homens mais velhos com adolescentes eram aprováveis – entre dois adultos não!), é possível perceber uma diferença de interpretação dessas práticas muito evidente se compararmos com os dias de hoje.


Mas como não poderia deixar de ser, chegou o momento na história em que essa interpretação sofreu mudanças: o cristianismo é uma referência que marca essa mudança. A partir de então, os comportamentos homossexuais começaram a ser ditos como fugindo à “lei da natureza” e pecaminosos, e, com o passar do tempo, passaram inclusive a ser estudados incansavelmente pela ciência, pois estas manifestações sexuais eram ditas à sociedade como uma ameaça ao costume moral. Ela passa no século XIX a fazer parte da categoria de perversão que significa: ato ou efeito de perverter, tornar-se perverso, corromper, desmoralizar, depravar, alterar.
Essa tradição ainda perdura até os dias atuais, apesar de por vezes se apresentar em uma roupagem mais sutil (mas nem sempre!). Essa defesa é na maioria das vezes pautada na tradição cristã, sendo comum vermos a Bíblia como referência; mas também acontece de serem trazidos argumentos que dizem dos aspectos biológicos. Não é difícil encontrarmos exemplos na mídia; há não muito tempo atrás, o pastor Silas Malafaia declarou não apenas que a homossexualidade seria pecado, como também que as pessoas escolheriam seguir por esse caminho. Disse: “não existe ordem cromossômica homossexual. O cromossomo de um homem hétero é igual ao de um homem homossexual, assim como o cromossomo da mulher hétero é como o da mulher homossexual. Homossexualidade é preferência, aprendida ou imposta, é comportamental”. (http://www.midiagospel.com.br/religiao/lanna-holder-silas-malafaia-homossexualidade)

Mas há quem defenda o contrário, mesmo dentro do cristianismo; a pastora LannaHolder, que um dia pregou um discurso similar ao de Malafaia, assumiu-se homossexual e fundou uma Igreja inclusiva – ou seja, uma Igreja que não enxerga a homossexualidade como pecado e que, portanto, não precisa ser “erradicada” do indivíduo. Discordando do pastor, Holder disse que “com o homossexual, entendemos que não é uma opção, mas sim uma orientação, que, na maioria dos casos, é irreversível, principalmente se for de nascença. Se eu pudesse escolher, jamais seria lésbica” (http://www.midiagospel.com.br/religiao/lanna-holder-silas-malafaia-homossexualidade).


Pode-se também achar outras opiniões entre grandes pensadores. Foucault, por exemplo, tem outro ponto de vista, que está mais oposta à do pastor; para ele, a moral está deslocada da lógica cristã. O autor diz a moral enquanto “um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos”. Essas regras e valores estão sendo propostas aos indivíduos o tempo todo, desde o nascimento, explicitamente ou não. Assim, sendo os aparelhos prescritivos que intermediam regras similares para diferentes indivíduos quase sempre os mesmos para grande parte da sociedade, são criados valores e regras massificados, que deixam em segundo plano os aspectos que constituem a individualidade de cada pessoa.
            Contudo, Foucault traz um elemento que diz da escapatória que achamos dentro dos nossos compromissos enquanto sujeito moral. Ao “conduzir-se – isto é, a maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código”, o sujeito humano amplia e flexibiliza, dentro da rigidez dos valores impostos por seu contexto, as suas possibilidades. Foucault traz um claro exemplo de como o fazemos dentro do âmbito da sexualidade:
“Seja um código de prescrições sexuais que determina para os dois cônjuges uma fidelidade conjugal estrita e simétrica, assim como a permanência de uma vontade procriadora; mesmo nesse quadro tão rigoroso, haverá várias maneiras de praticar essa austeridade, várias maneiras de ‘ser fiel’”.
Épreciso lembrar que nossos valores morais podem se modificar; eles se ancoram em um espaço historicamente e socialmente demarcado. É importante refletir sobre as consequências de certas práticas discriminatórias, práticas essas que constantemente advêm de verdades absolutas e de patologias (perversões) que hoje em dia rodeiam o campo científico.
Lembrando de Carlos e André, será que eles ainda seriam considerados na “perversão”? Talvez esse casal ainda divida opiniões. Mas pode ser útil lembrar das ideias de Foucault: Carlos e André podem estar seguindo uma ética que diz respeito à uma relação ética entre o que é dito como tal pela sociedade e uma relação com si. Assim como podem criar um estigma (que podem se pautar ou não em argumentos cristãos), essas categorias também podem ter um efeito positivo, permitindo aos indivíduos que falem por si e reivindiquem os seus direitos; mas é importante, sempre que nos depararmos com certezas muito concretas, nos lembrarmos de Carlos, de André e das múltiplas possibilidades.

Referências:

FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: ed. Graal, 1985.

MARCONDES, D. Textos Básicos de Ética de Platão a Foucault. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 3 ed. 2008.


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