Por: Jucinara Rodrigues e Maria Eduarda Santos
“Carlos e André mantém relações sexuais às escondidas, todas as noites
André pula o muro da casa de Carlos para passarem a noite juntos. Essa relação
já dura alguns anos. Eles não querem que ninguém saiba sobre isso porque eles
são homens muito influentes na cidade e não gostariam de acabar fazendo
tratamento psiquiátrico. No sec. XVII foram registadas 4.419 denúncias
de sodomia no Brasil com punições severas, mas no momento
desse relacionamento aqui descrito, no século XIX, as coisas mudaram um
pouco... Carlos e André são considerados perversos, seres anormais que
despertam o interesse da psiquiatria. E hoje? Como eles seriam tratados?”
No livro “A história da
sexualidade: a vontade de saber” Foucault traça uma linha genealógica que nos
mostra como o discurso sobre a sexualidade vem sendo multiplicado em nossa
sociedade através de práticas confessionárias, seja no âmbito religioso,
acadêmico ou médico. Mas como a multiplicação desse discurso passa na
modernidade, a dar origem aos conceitos de “normal” e “patológico” dentro do
âmbito da sexualidade? Como chegamos à conclusão do que é uma perversão?
Vamos
começar nossa história fazendo uma viagem no tempo; voltando, chegaremos à
Grécia Antiga. Nesse contexto, práticas sexuais entre dois homens aconteciam
abertamente à sociedade; os mais velhos mantinham práticas com os mais novos a
fim de passar aos jovens conhecimentos sobre a filosofia, o amor e a moral.
Apesar das restrições (apenas relações de homens mais velhos com adolescentes
eram aprováveis – entre dois adultos não!), é possível perceber uma diferença
de interpretação dessas práticas muito evidente se compararmos com os dias de
hoje.
Mas como não poderia
deixar de ser, chegou o momento na história em que essa interpretação sofreu
mudanças: o cristianismo é uma referência que marca essa mudança. A partir de
então, os comportamentos homossexuais começaram a ser ditos como fugindo à “lei
da natureza” e pecaminosos, e, com o passar do tempo, passaram inclusive a ser
estudados incansavelmente pela ciência, pois estas manifestações sexuais eram
ditas à sociedade como uma ameaça ao costume moral. Ela passa no século XIX a
fazer parte da categoria de perversão que significa: ato ou
efeito de perverter, tornar-se perverso, corromper, desmoralizar, depravar,
alterar.
Essa tradição ainda
perdura até os dias atuais, apesar de por vezes se apresentar em uma roupagem
mais sutil (mas nem sempre!). Essa defesa é na maioria das vezes pautada na
tradição cristã, sendo comum vermos a Bíblia como referência; mas também
acontece de serem trazidos argumentos que dizem dos aspectos biológicos. Não é
difícil encontrarmos exemplos na mídia; há não muito tempo atrás, o pastor
Silas Malafaia declarou não apenas que a homossexualidade seria pecado, como
também que as pessoas escolheriam seguir por esse caminho. Disse: “não existe ordem cromossômica
homossexual. O cromossomo de um homem hétero é igual ao de um homem
homossexual, assim como o cromossomo da mulher hétero é como o da mulher
homossexual. Homossexualidade é preferência, aprendida ou imposta, é
comportamental”. (http://www.midiagospel.com.br/religiao/lanna-holder-silas-malafaia-homossexualidade)
Mas há quem defenda o contrário, mesmo dentro
do cristianismo; a pastora LannaHolder, que um dia pregou um discurso similar
ao de Malafaia, assumiu-se homossexual e fundou uma Igreja inclusiva – ou seja,
uma Igreja que não enxerga a homossexualidade como pecado e que,
portanto, não precisa ser “erradicada” do indivíduo. Discordando do pastor,
Holder disse que “com o homossexual, entendemos que não é uma opção, mas sim
uma orientação, que, na maioria dos casos, é irreversível, principalmente se
for de nascença. Se eu pudesse escolher, jamais seria lésbica” (http://www.midiagospel.com.br/religiao/lanna-holder-silas-malafaia-homossexualidade).
Contudo,
Foucault traz um elemento que diz da escapatória que achamos dentro dos nossos
compromissos enquanto sujeito moral. Ao “conduzir-se – isto é, a maneira pela
qual se deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos
elementos prescritivos que constituem o código”, o sujeito humano amplia e
flexibiliza, dentro da rigidez dos valores impostos por seu contexto, as suas
possibilidades. Foucault traz um claro exemplo de como o fazemos dentro do
âmbito da sexualidade:
“Seja um código de prescrições
sexuais que determina para os dois cônjuges uma fidelidade conjugal estrita e
simétrica, assim como a permanência de uma vontade procriadora; mesmo nesse quadro
tão rigoroso, haverá várias maneiras de praticar essa austeridade, várias
maneiras de ‘ser fiel’”.
Épreciso lembrar que nossos valores
morais podem se modificar; eles se ancoram em um espaço historicamente e
socialmente demarcado. É importante refletir sobre as consequências de certas
práticas discriminatórias, práticas essas que constantemente advêm de verdades
absolutas e de patologias (perversões) que hoje em dia rodeiam o campo
científico.
Lembrando
de Carlos e André, será que eles ainda seriam considerados na “perversão”?
Talvez esse casal ainda divida opiniões. Mas pode ser útil lembrar das ideias
de Foucault: Carlos e André podem estar seguindo uma ética que diz respeito à
uma relação ética entre o que é dito
como tal pela sociedade e uma relação com si. Assim como podem criar um estigma
(que podem se pautar ou não em argumentos cristãos), essas categorias também
podem ter um efeito positivo, permitindo aos indivíduos que falem por si e
reivindiquem os seus direitos; mas é importante, sempre que nos depararmos com
certezas muito concretas, nos lembrarmos de Carlos, de André e das múltiplas
possibilidades.
Referências:
FOUCAULT,
M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: ed. Graal,
1985.
MARCONDES, D. Textos Básicos de Ética de Platão a Foucault. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 3 ed. 2008.
MARCONDES, D. Textos Básicos de Ética de Platão a Foucault. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 3 ed. 2008.
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