Por: Ana Catarina Moreira e Isabel
Remigio
O
que significa ser mulher? Ser mãe? Esposa? Dona de casa? Casar com um homem?
Ser feminina? Como a sexualidade da mulher é vista? Alguns autores diriam que a
sexualidade feminina foi muito marcada na nossa cultura por poderes e saberes,
que atravessam os seus corpos, de maneira muitas vezes opressora e
controladora. Por que a sexualidade da mulher parece se apresentar de forma tão
desigual em relação ao sexo masculino? É uma pergunta que deixa a maioria das
pessoas bastante curiosas.
Um
filme que retrata um aspecto interessante à respeito do corpo da mulher, e de
como ele pode ou não ser utilizado para o prazer feminino, se chama Flor do
Deserto[i].
Ele conta a história verídica de uma modelo nascida na Somália, que aos treze
anos foi vendida e obrigada a casar com um senhor de 60 anos, onde esta seria a
quarta esposa de acordo com a tradição local. Após essa situação, foge para o
deserto, onde encontra alguns parentes que a enviam à Londres. Lá encontra uma
cultura totalmente diferente e percebe que a sua história não se parecia com a
do restante das mulheres. Waris, como é chamada, foi circuncisada na infância,
sentia dores e dificuldades ao urinar, mas considerava isto como normal, diante
da sua cultura. Por fim, é encontrada por um fotógrafo, se transformando em uma
modelo internacional. Em contraste com sua tradição, a descoberta de uma nova
realidade a faz querer modificar a sua, iniciando uma luta contra esta tradição
e tornando-se embaixadora da ONU (Organização das Nações Unidas).
Atriz
que a interpreta no filme Flor do Deserto, Liya Kebede, e Waris Dirie à sua
direita.
A
sexualidade ou comportamento sexual parece ser bastante acometido por vários
fatores que levam a uma moral, conjunto de valores e regras de ação propostas
ao indivíduo. Na situação de Waris, esses valores a fizeram enxergar como
normal a situação por qual ela passou, porém quando comparada a culturas
diferentes, não é bem aceita.
Esta
diferença entre culturas podem ser vistas e analisadas de várias formas. Uma
delas é através do relativismo cultural. De acordo com Franz Boas,
o relativismo
cultural parte do pressuposto de que cada cultura se expressa de forma
diferente. Dessa forma, trata-se de pregar que a atividade humana individual
deve ser interpretada em um contexto, nos termos de sua própria cultura.
Assim, de acordo com o relativismo cultural, a mutilação sofrida por Waris se
justifica, já que esse ato é praticado há três mil anos na Somália.
Outra
maneira de enxergar as diferenças culturais é a partir do universalismo. De
acordo com essa teoria a identidade do individuo é formada antes das relações
sociais. Ou seja, de acordo com essa afirmação os indivíduos teriam direitos
que são inerentes a eles, e que independem da cultura em que estes estejam
inseridos. Assim, de acordo com o universalismo, a prática da circuncisão
feminina deveria ser extinta independentemente da cultura em que esta prática
está inserida. Em geral, os direitos humanos costumam ter uma visão
universalista do mundo, condenando diversas práticas que para nós ocidentais,
parecem barbaras e sem sentido. Porém seria correto descartar a influência e
importância de uma cultura milenar como as das tribos da Somália?
Apesar da polarização da discussão
entre estes dois pontos de vista ser algo que ainda hoje ocorre, há outras
maneiras de enxergar as diferenças culturais que geram tantas polêmicas mundo a
fora. Uma dessas maneiras é enxergar tais diferenças a partir de "óculos
multiculturalistas". Sobre o multiculturalismo Boaventura coloca que é
pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a
competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de
uma política contra hegemônica de direitos humanos no nosso tempo. Boaventura
também diz que a superação do debate sobre universalismo e relativismo é
essencial, pois segundo o autor, "trata-se de um debate intrinsecamente
falso, cujos conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção
emancipatória de direitos humanos."
Michel Foucault.
Saindo
um pouco da ideia do relativismo e universalismo cultural podemos refletir
também sobre o conceito de biopoder, introduzido por Foucault[ii]
em seu livro "A vontade de saber", primeiro volume da "História da
Sexualidade". Apesar de Foucault
está falando dos estados modernos ao introduzir tal conceito, podemos utilizá-lo
aqui à medida em que há uma justificativa para a circuncisão feminina: a
manutenção da pureza da mulher. Esta pureza não parece ter muito a ver com a
saúde física da mulher, mas sim com algo subjetivo e intrínseco dessa cultura,
como uma forma de controle do corpo e por consequente do prazer feminino que é
visto como impuro.
Então,
como se deve agir quando encaramos situações as quais não estão de acordo com o
que acreditamos? Ou o que nossa cultura não considera correto? A intervenção
seria a melhor saída ou deve-se respeitar e aceitar os relativismos? Talvez uma
maneira de tentar driblar todas essas tentativas de controle dos nossos corpos
seria a tomada de consciência de que, como diria Simone de Beauvoir, não se
nasce mulher, torna-se. Então o que significa mesmo ser mulher?
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