segunda-feira, 2 de março de 2015

Sobre ser mulher ou tornar-se (?)

Por: Ana Catarina Moreira e Isabel Remigio   

O que significa ser mulher? Ser mãe? Esposa? Dona de casa? Casar com um homem? Ser feminina? Como a sexualidade da mulher é vista? Alguns autores diriam que a sexualidade feminina foi muito marcada na nossa cultura por poderes e saberes, que atravessam os seus corpos, de maneira muitas vezes opressora e controladora. Por que a sexualidade da mulher parece se apresentar de forma tão desigual em relação ao sexo masculino? É uma pergunta que deixa a maioria das pessoas bastante curiosas.
Um filme que retrata um aspecto interessante à respeito do corpo da mulher, e de como ele pode ou não ser utilizado para o prazer feminino, se chama Flor do Deserto[i]. Ele conta a história verídica de uma modelo nascida na Somália, que aos treze anos foi vendida e obrigada a casar com um senhor de 60 anos, onde esta seria a quarta esposa de acordo com a tradição local. Após essa situação, foge para o deserto, onde encontra alguns parentes que a enviam à Londres. Lá encontra uma cultura totalmente diferente e percebe que a sua história não se parecia com a do restante das mulheres. Waris, como é chamada, foi circuncisada na infância, sentia dores e dificuldades ao urinar, mas considerava isto como normal, diante da sua cultura. Por fim, é encontrada por um fotógrafo, se transformando em uma modelo internacional. Em contraste com sua tradição, a descoberta de uma nova realidade a faz querer modificar a sua, iniciando uma luta contra esta tradição e tornando-se embaixadora da ONU (Organização das Nações Unidas).


Atriz que a interpreta no filme Flor do Deserto, Liya Kebede, e Waris Dirie à sua direita.

A sexualidade ou comportamento sexual parece ser bastante acometido por vários fatores que levam a uma moral, conjunto de valores e regras de ação propostas ao indivíduo. Na situação de Waris, esses valores a fizeram enxergar como normal a situação por qual ela passou, porém quando comparada a culturas diferentes, não é bem aceita.
Esta diferença entre culturas podem ser vistas e analisadas de várias formas. Uma delas é através do relativismo cultural. De acordo com Franz Boas, o relativismo cultural parte do pressuposto de que cada cultura se expressa de forma diferente. Dessa forma, trata-se de pregar que a atividade humana individual deve ser interpretada em um contexto, nos termos de sua própria cultura. Assim, de acordo com o relativismo cultural, a mutilação sofrida por Waris se justifica, já que esse ato é praticado há três mil anos na Somália.
Outra maneira de enxergar as diferenças culturais é a partir do universalismo. De acordo com essa teoria a identidade do individuo é formada antes das relações sociais. Ou seja, de acordo com essa afirmação os indivíduos teriam direitos que são inerentes a eles, e que independem da cultura em que estes estejam inseridos. Assim, de acordo com o universalismo, a prática da circuncisão feminina deveria ser extinta independentemente da cultura em que esta prática está inserida. Em geral, os direitos humanos costumam ter uma visão universalista do mundo, condenando diversas práticas que para nós ocidentais, parecem barbaras e sem sentido. Porém seria correto descartar a influência e importância de uma cultura milenar como as das tribos da Somália?
Apesar da polarização da discussão entre estes dois pontos de vista ser algo que ainda hoje ocorre, há outras maneiras de enxergar as diferenças culturais que geram tantas polêmicas mundo a fora. Uma dessas maneiras é enxergar tais diferenças a partir de "óculos multiculturalistas". Sobre o multiculturalismo Boaventura coloca que é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra hegemônica de direitos humanos no nosso tempo. Boaventura também diz que a superação do debate sobre universalismo e relativismo é essencial, pois segundo o autor, "trata-se de um debate intrinsecamente falso, cujos conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos."


Michel Foucault.

Saindo um pouco da ideia do relativismo e universalismo cultural podemos refletir também sobre o conceito de biopoder, introduzido por Foucault[ii] em seu livro "A vontade de saber", primeiro volume da "História da Sexualidade". Apesar de Foucault está falando dos estados modernos ao introduzir tal conceito, podemos utilizá-lo aqui à medida em que há uma justificativa para a circuncisão feminina: a manutenção da pureza da mulher. Esta pureza não parece ter muito a ver com a saúde física da mulher, mas sim com algo subjetivo e intrínseco dessa cultura, como uma forma de controle do corpo e por consequente do prazer feminino que é visto como impuro.
Então, como se deve agir quando encaramos situações as quais não estão de acordo com o que acreditamos? Ou o que nossa cultura não considera correto? A intervenção seria a melhor saída ou deve-se respeitar e aceitar os relativismos? Talvez uma maneira de tentar driblar todas essas tentativas de controle dos nossos corpos seria a tomada de consciência de que, como diria Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, torna-se. Então o que significa mesmo ser mulher?



[i] Flor do Deserto está disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=BrZEvSrGUpQ

[ii] FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. Ed. Graal - RJ, 1985.

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