quarta-feira, 11 de julho de 2018

A transgeneridade sob a ótica foucaultiana do cuidado a si num contexto de biopoder e o papel ético da psicologia frente a essa realidade

Por: Alena de Oliveira Medeiros Brito





A construção histórica do sujeito moral no paradigma ético teve, ao longo do tempo e de estudos, constantes reavaliações e atribuições de sentido. Por entre as diversas teorias filosóficas ao longo da história, o que se percebe é, segundo Heidegger (1987, apud GALVÃO, 2014), uma recorrente transfiguração e redução deste sujeito à forma como ele se apresenta, pelo que nele surge, se efetua e se mostra ao mundo, o que se realiza na physis, nas aparências: nos entes. O ser, dessa forma, teria sido pensado de maneira equivocada, sendo compreendido como um ente, um aparente. Compreendido, a exemplo, como “ideia” em Platão, “razão” em Kant, “espírito absoluto” em Hegel, “vontade de potência” em Nietzsche. O que se inicia, dessa forma, é uma construção conceitual do homem enquanto objeto de conhecimento, desvinculando-o de toda forma de relação de cuidado para consigo, visto que, para ter acesso à verdade sobre si, basta conhecer toda a formação discursiva a seu respeito (GALVÃO, 2014). Em outras palavras, durante muito tempo a sociedade se propôs a produzir verdades sobre o ser humano, esvaziando-o de suas polissemias, suas mais diversas possibilidades de simplesmente “vir-a-ser” para além do que aparenta, como forma de deter um saber universal e uniformizante que se sobrepusesse a ele para exercer controle, poder. Dessa forma, tomado como substância permanente e imutável por definições conceituais cujas essências se encontram nas aparências, nos juízos de valor atribuídos e compartilhados, o “ser” vai perdendo seu horizonte de abertura às suas potencialidades, suas possibilidades de existir no mundo (PESSOA, 2007, apud GALVÃO, 2014) e vai gradativamente se sujeitando, psíquica e corporalmente, a instâncias de poder que delimitam seu agir, pensar e existir em sociedade, moldando uma subjetividade dócil, controlada (DELEUZE, 2005, apud GALVÃO, 2014). A supervalorização de verdades universais no humanismo em suporte à questão “o que é o ser humano?” e não “quem sou eu?”, contribuiu, desse modo, para um ofuscamento da verdade e do sentido do ser, bem como para um assujeitamento a uma vida regulamentada, nas suas mínimas configurações, seja na estrutura padronizada de cotidiano em que o indivíduo existe e atua, seja na forma de se vestir e se expressar, seja na sua forma de amar, sejam nos seus sonhos e escolhas para o futuro, sejam em seus relacionamentos interpessoais. O tempo passa e esquecemos que estamos esquecidos, retomando o pensamento Heideggeriano (DELEUZE, 2005). Esquecidos de cuidar de nós mesmos. Pois vivemos numa sociedade que, segundo Galvão (2014), ocupa nossa consciência com coisas que não nos dizem respeito, e se dizem, não nos são propriamente. É uma realidade que nos distrai de quem somos e faz com que tentemos sobreviver a uma forma de vida massivamente monótona, superficial, padronizada, dócil, sem oscilações, sem paixão e vontade, pois nossos reais desejos, sonhos e formas de expressão são diariamente sublimados por definições ideais do que devemos ser, de modo a exercer a produtividade social necessária, satisfazendo, em contrapartida, a condição inerte de incapacidade para problematizar e reagir ao sistema, a uma sociedade disciplinar em regime de biopoder, como Foucault bem discursa. Nessa perspectiva, a realidade da população Trans merece destaque em sua luta diária contra esse paradigma normatizante da vida, da subjetividade, da corporeidade e da expressão do ser humano.

Identidade X Ideal
Segundo Silva et al. (2017), Transgêneros são pessoas que se percebem como pertencentes a um gênero que não condiz com o atribuído socialmente pela sua genitália de nascimento, e este sentimento de discordância geralmente é experimentado desde a infância. Ainda conforme a autora, e colaboradores, esta não identificação impulsiona o sujeito a buscar por expressões que remetem às manifestações do gênero oposto, como forma de integrar seu corpo à identidade do “eu ideal”, podendo recorrer, como traz Jesus (2012), a transformações na forma de se vestir, tratamentos hormonais e cirurgias. Neste sentido, é bastante pertinente pensar na autopercepção desses sujeitos a partir de definições, visões e significações de outrem, que podem influenciá-los consideravelmente a uma busca desenfreada por se fazer mais adequado às expectativas inflexíveis da sociedade, diante do que para esta melhor representaria um homem e uma mulher. Goffman (1988) traz muito bem essa noção quando discursa sobre o conceito de “identidade do eu” como a percepção que o indivíduo possui sobre si mesmo configurada a partir de como o outro o enxerga, percebe e espera de sua conduta. São as normas sociais definidas sobre o indivíduo, a conceituação construída sobre como cada um deve ser. É como se tudo o que o sujeito é e almeja ser não o pertencesse. Como se não possuísse liberdade para expressar a “sua” verdade, pois esta já está estabelecida a seu respeito.
De forma a iniciar algumas reflexões importantes sobre a questão, segue abaixo um vídeo da personagem Nomi, da série Sense 8, em desabafo sobre sua história de descoberta e aceitação diante de sua identidade de gênero:
Tente agora imaginar o sofrimento de ter que satisfazer a uma imagem, a uma corporeidade e expressividade distintas de você para ser aceito, para ganhar respeito e dignidade - elemento que todos deveríamos ter por direito. Você se olha através de um espelho e não se reconhece verdadeiramente em nenhuma configuração da imagem, apenas no olhar de insatisfação por estar enclausurado numa realidade que foi moldada para você, mas que não se adequa a toda a sua organização e identidade psíquica. Dessa forma, pode existir sim grande influência da pressão social por adequação ao binarismo sexo/gênero idealmente construído sobre o ritmo de transformação do sujeito Trans, levando-o a percorrer muitas vezes caminhos de grande sofrimento e vulnerabilidade para maior aceitação como ser humano, entretanto, essa busca por modificações corporais fundamenta-se, antes de tudo, em sua própria satisfação pessoal e no fortalecimento de sua autoestima através da materialização dos seus desejos de possuir uma matéria, uma forma existencial que mais expresse seu ser psíquico (SILVA et al., 2017). Esta é a realidade pulsante do sujeito Trans. Uma realidade que até pouco tempo era reconhecida como adoecimento psíquico.
A seguir, alguns pensamentos da filósofa Judith Butler sobre a construção cultural em torno do binarismo de gênero, e sua reflexão referente ao reducionismo que ele pode produzir diante das possibilidades diversas de expressão do ser: https://m.youtube.com/watch?v=9MlqEoCFtPM

(Des)construindo gêneros
É importante destacar, a partir deste discurso de Judith, que há sim uma ordem hegemônica binária naturalizada, e naturalizante, na questão sexo/gênero, a cisnormatividade, que busca impor a cisgeneridade - a qual se configura como a “condição de um sujeito que se sente confortável com o sistema sexo/gênero que lhe foi outorgado no nascimento ou gestação” (MARANHÃO F, 2015, p. 191) - como o padrão normal e ideal de ser, o que leva muitas pessoas a estranharem e, assim, deslegitimarem os sujeitos Trans por suas singularidades de expressão.
Nessa perspectiva, Berenice Bento, em conversa com Dias (2014), discursa bastante, sobre a questão do biopoder, do controle sobre a vida humana, com base na imposição da norma cisgênera pelo estado, numa perspectiva semelhante a Judith Butler:
“Para que serve gênero? O gênero serve para construir corpos, é uma máquina de produção em série de seres humanos. Se você tem pênis, é homem; se tem vagina, é mulher.  A população é tratada em função da ideia do masculino/homem e feminino/mulher. Em ambos os casos você deve ser heterossexual. E há então um conjunto de dispositivos linguísticos, médicos, religiosos [...] que se organiza e se estrutura a partir de uma engrenagem bastante complexa para produzir uma afirmação sobre o ser: "eu sou uma mulher". O que significa alguém afirmar isso? "Eu sou uma mulher" e, portanto, "eu não sou um homem". As coisas têm nomes, há coisas de meninos e coisas de meninas. Mas se o menino quer brincar com coisas de meninas, qual o problema? Estamos ainda no campo das demarcações. Ao produzir as identidades de homem e mulher com base na biologia, estamos produzindo identidades de gênero a partir de um processo extremamente violento, que está vinculado à produção de identidades sexuais. A produção do sujeito no mundo segue um protocolo de gênero e de sexualidade. Se consideramos que esse sistema de gênero não serve, pois produz exclusão e sofrimento, o que devemos fazer? Quando falamos sobre as relações de poder, quando sugerimos que gênero não deve ser um assunto da medicina, quando defendemos o radical direito à autodeterminação de gênero, estamos buscando libertar o gênero do biopoder.”

Que foi exatamente o que se iniciou com o acontecimento do dia 18 de junho de 2018, quando  a população Trans foi finalmente retirada da condição de transtorno mental pela Organização Mundial da Saúde, a qual atualizou a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde - o CID 11 (MARTINELLI, 2018). Por trás desta conquista, há muito tempo esperada, existe, contudo, toda uma história de sofrimento e desvalorização que merece uma profunda reflexão.

Patologização do ser e o cuidado psicológico
Anteriormente classificados como disforia de gênero, estes sujeitos não possuíam a possibilidade nem de se autodeterminar, nem de modificar seus próprios corpos sem a opinião diagnóstica de profissionais, única porta de entrada para o processo transexualizador, com terapia hormonal e a cirurgia de transgenitalização (comumente conhecida como “cirurgia de mudança de sexo”). O detalhe é que, para ser diagnosticado, o sujeito deveria passar por critérios numerosos e limitantes, satisfazendo toda uma ideia, um saber que se tinha sobre o que ele é, e necessitando também retificar sofrimento psíquico em relação a seu corpo perante um psicólogo, parte integrante da equipe multidisciplinar - composta também por médicos, assistentes sociais e enfermeiros - que o acolhia neste processo de mudança, mas que também o deslegitimava a partir da necessidade de laudos relativos à sua “condição patológica”.  Neste sentido, eis uma importante reflexão: pessoas Cis modificam seus corpos todos os dias, seja através de exercícios físicos, dietas, cirurgias ou mesmo esculpindo-os a partir da arte. E estas transformações não são interpretadas ou definidas como derivadas de um transtorno, de um adoecimento, nem compreendidas como mutilações ou agressões à sua corporeidade. Desse modo, torna-se realmente bastante pertinente questionar: por que pessoas Trans precisavam ser diagnosticadas como portadoras de um transtorno mental para ter alguma liberdade perante seu próprio corpo? Novamente, a quem pertencia esse corpo? E quanto à atuação psicológica nesse processo? É fundamental e completamente necessário operar eticamente em prol da valorização, respeito e não patologização do sujeito Trans, principalmente numa área de atuação profissional tão sensível como a psicologia, que estuda para promover um cuidado humanizado, empático e acolhedor para as pessoas, visando seu bem-estar integral. Nessa perspectiva, conforme o Conselho Federal de Psicologia (CFP), na resolução n° 1, de 29 de janeiro de 2018, é papel do(a) psicólogo(a), em sua prática profissional, contribuir com seu conhecimento para a eliminação da transfobia, reconhecendo e legitimando a autodeterminação desses sujeitos diante de sua identidade de gênero, e consequentemente trabalhando de modo a fortalecer e impulsionar mais autonomia destes sobre sua própria vida, expressividade e subjetividade. Dessa forma, o(a) profissional de psicologia não deve exercer ações que corroborem com o preconceito, ser conivente com práticas ou pronunciamentos discriminatórios, reforçar estigmas e estereótipos e muito menos atuar de forma a sustentar a patologização dessa população, tornando-se, assim, de grande importância sustentar a construção de uma prática profissional que lute ao lado destes sujeitos na gradual desconstrução do preconceito na sociedade, aproximando-se, por exemplo, de movimentos sociais, trocando experiências com esses indivíduos, refletindo constantemente sobre sua própria atuação profissional, buscando sempre atualizá-la e instrumentalizá-la para a defesa e o reconhecimento dos direitos de pessoas transgêneras. Bem como para a promoção de maior qualidade em sua saúde, em sua vida, operando pela perspectiva da dignidade humana e contribuindo, consequentemente, para a eliminação da violência corporal e simbólica a que pessoas Trans estão submetidas, tendo em vista o próprio papel ético do psicólogo no auxílio ao processo de inclusão social desses sujeitos e no reconhecimento de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art° 5, Constituição Federal de 1988, p. 17). Neste sentido, faz-se importante retornar à nossa atualidade e refletir sobre o enfrentamento social ainda latente na realidade desses indivíduos, que ainda não possuem a garantia de seus direitos.

Dificuldades latentes da atualidade Trans
Podemos refletir, primeiramente, sobre uma importante questão: como essa população mantém sua sobrevivência com as exigências normativas sociais sustentando a perspectiva do mundo do trabalho atual? Como incluir essa população na produtividade social se o seu grande instrumento de interação, atividade e contato com o mundo é rejeitado por diagramas padronizados de poder?
“A sucessão de exclusões – na família, na escola e no mercado de trabalho – acaba fazendo com que as opções sejam reduzidas à prostituição, ao tráfico de drogas ou ao trabalho em casas noturnas”, discursa Silvia Cavallere, vice-presidente da União Nacional LGBT, em reportagem ao jornal estadão (BRASIL, 2017).
Brasil (2017) aborda que, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% das mulheres Trans, por exemplo, adentram no mundo violento e perigoso da prostituição nas ruas brasileiras, arriscando suas próprias vidas diariamente, por não conseguirem oportunidade no mercado formal, devido ao preconceito e à baixa escolaridade, tendo em vista o grande índice de evasão escolar - que permeia os 82%, segundo a Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (ALMEIDA et al., 2017). “E, mesmo as graduadas e aptas a exercerem uma profissão de alto desempenho, por vezes são recusadas por sua identidade de gênero, o que não deixa outra opção” (BRASIL, 2017).
Angela Lopes, mulher Trans, ex-diretora da Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual de São Carlos, em reportagem ao jornal estadão (BRASIL, 2017), declara: “isso é um aprisionamento social. A sociedade designou que esses seres humanos não possuem potencialidades para exercer outra função que não seja o trabalho sexual, aí elas são colocadas como objeto.”
Alguns transgêneros, porém, conseguem emprego como operadores de telemarketing em empresas de Call Center. Consegue refletir sobre o por quê? Os clientes não vão ter a possibilidade de olhar e analisar os corpos de suas atendentes: “Você escuta minha voz, mas não sabe quem eu sou” (FLORES et al., 2011, p. 88). Neste sentido, é curioso pensar o quanto a inclusão dessa população por estas empresas pode estar relacionada à questão da invisibilidade deste tipo de trabalho.
Nesta perspectiva, nota-se grande pressão por imagem no mercado de trabalho, por aparência adequada às exigências sociais, o que pode incentivar muitas pessoas transgêneras a acelerarem seu processo de mudança, pondo em risco a sua própria saúde, seja aplicando clandestinamente grande quantidade de hormônios aos seus corpos, seja utilizando silicone líquido industrial para reforçar o ideal social construído sobre seu gênero, como no caso de algumas mulheres Trans (PINTO et al., 2017). E a situação não estaciona aqui. O preconceito e a discriminação são tão absurdamente presentes que geram graves problemas ao bem-estar psíquico e físico dessa população, com índices de depressão chegando a 60% em alguns países, segundo a revista the Lancet (MEDIAVILLA, 2016); considerável presença da temática do suicídio, com a estimativa de 41% da população Trans já ter atentado contra a própria vida (HAAS et al., 2014); e a prática absurda e espantosa de crimes de ódio - sendo o Brasil, segundo relatório da ONG Transgender Europe (TGEu), líder mundial na taxa de homicídios a pessoas trans, cuja expectativa de vida desde 2013 não passa dos 35 anos, segundo dados do IBGE (ARAÚJO, 2017). Ah, e nessa mesma nação ainda não existe uma lei que regulamente de forma efetiva o uso do banheiro público por essa população, espaço social tão íntimo, particular e necessário do nosso dia a dia.
Apesar desta difícil realidade, uma conquista é certa: o nome social. Porém, é necessário se pensar sobre o quanto essa medida se tornava uma solução provisória para um problema que deveria de fato ser repensado e reavaliado de modo a facilitar o reconhecimento e valorização da identidade de gênero de cada um.
Segue abaixo vídeo de um Youtuber Trans partilhando importante reflexão sobre a questão do nome social:
Antes, o que ocorria, geralmente, eram extensos procedimentos burocráticos para a alteração do prenome nos documentos, como bem retrata o Youtuber, fato que deixava diversos Trans como reservistas, e os que conseguiam passavam muitas vezes por longas etapas processuais, dentre elas a judicial. Essa burocratização do processo era um fator que trazia muitos prejuízos à autoestima do indivíduo Trans, o qual ficava sujeito a vivenciar situações constrangedoras de ser designado por um nome com o qual não se identificava, com a necessidade de ficar se explicando e se expondo, desgastando sua energia psíquica e emocional, para defender sua identidade, como se estivesse tentando conquistar algo que não é seu por direito. Neste sentido, pensemos, por que não se promovia uma mudança direta e simples no nome civil? É sob essa perspectiva que novas medidas foram enfim tomadas neste ano, trazendo mais uma conquista para essa população.
A Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), regulamentou, no dia 29 de junho de 2018, mudança de nome e gênero para Transgêneros, em cartórios de todo o país. Dessa forma, pessoas maiores de 18 anos podem fazer alterações no registro civil, em certidões de nascimento e casamento com base em sua autodeterminação referente à sua identidade de gênero e na confirmação de documentos pessoais originais, sem necessitar apresentar uma ordem judicial ou laudos psicológicos e médicos que comprovem mudança de sexo e/ou terapia hormonal, os quais são mencionados como ponto facultativo complementar. Tal medida, contudo, aflige paradoxalmente certa fragilidade à autonomia do sujeito de se autodeclarar, como discute Maria Eduarda Aguiar - em reportagem feita por Mendes, Ferreira (2018) ao jornal O Globo - advogada que, em 2017, foi a primeira transexual no Brasil a obter mudança de nome na carteira profissional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) :
         “Não deveria haver nem menção a laudo médico, nem como documento complementar. Recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) se manifestou atestando que a transexualidade não é uma doença mental. A nossa briga é para que a transexualidade não seja encarada como algo patológico. Tenho uma preocupação se na aplicação da resolução os cartórios vão entender de forma correta o texto e não vão exigir esses documentos” — afirma.
         Ainda segundo a advogada, outro ponto sensível do texto é a exigência de apresentação de diversas certidões para alterar as informações de nome e gênero (Ibidem, 2018):
         “Levando em consideração que a população trans tem difícil acesso a quase tudo, o número de certidões exigidas é excessivo e torna o processo burocrático. Bastava que os próprios cartório fizessem essas pesquisas em seus bancos de dados” — critica Maria Eduarda, dizendo, por outro lado, que ainda assim a resolução é muito positiva: “De qualquer forma, a medida facilitou o acesso, porque as pessoas não terão seus pedidos negados de forma arbitrária, como ocorria antes. Não posso negar que é um avanço.”
Dessa forma, apesar de algumas fragilidades, essas medidas representam, contudo, um marco para os direitos Trans, e nos dão motivos para celebrar, como também para fortalecer movimentos sociais que demandem por mais transformações políticas em prol desses indivíduos, mostrando-nos o quanto é importante rever a lei de forma a não necessitar de compensações, de soluções paliativas para as dificuldades enfrentadas pelos transgêneros, mas de forma a atender e solucionar de fato o que se demanda por essa população, que é o direito de ser reconhecida em tudo aquilo que ela se identifica: em nome, em corpo, em subjetividade. É o direito básico à dignidade humana que tanto prega o art° 1 da Constituição Federal (1988, p. 15), quanto da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948, p. 4). Não devendo ser, pois, a opinião de um juiz, um psiquiatra, um psicólogo ou da sociedade como um todo o marco decisório para determinar o “ser” desse sujeito. Mas o próprio reconhecimento e autodeterminação deste sobre si mesmo, que, como bem discursa Foucault, trazido por Galvão (2014), ao se ocupar de si e se distanciar um pouco dos enquadres e demandas padronizadas do mundo, pode se autoconhecer e refletir sobre o contexto em que se situa, para orientar sua forma de cuidado a si próprio de modo a valorizar seu verdadeiro ser e existir no mundo, alcançando, enfim, momentos de liberdade e dando a si mesmo regras de existência distintas das estabelecidas pelas instâncias de poder opressoras.
https://youtu.be/MRJYPG03XRE  (Música “Be Yourself”, do cantor Harrison Storm, que achei bastante pertinente à jornada de coragem e enfrentamento da população Trans na busca por viver seu verdadeiro eu).
Neste sentido, torna-se fundamental instrumentalizar a prática psicológica de forma a se implicar na defesa e no cuidado a essa população, que apesar de possuir algumas conquistas importantes, ainda precisa trilhar um longo caminho de luta por reconhecimento, visibilidade, garantia de direitos e abertura social como um todo, caminho que a deixa tão vulnerável tanto física como psicologicamente, necessitando, pois, de suporte humanizado e empático de profissionais que devem operar ética e moralmente para seu bem-estar biopsicossocial, em suas mais diversas expressões do ser.
É assim, por fim, que podemos mediar estes sujeitos na busca por garantir sua oportunidade de esculpir uma vida mais “bela”, mais agradável aos seus próprios olhos, gerando uma noção de estética para a existência, uma noção de obra de arte, que se traduz no modo de ser de toda e qualquer produção original, no sentido da criação, que faz aparecer o que, antes, não aparecia (PESSOA, 2013, apud GALVÃO, 2017), ou seja, através de cada configuração singular da subjetividade, corporeidade e expressividade humanas que emergem na existência e têm a possibilidade de se reinventar a cada instante do viver.
Como conclusão deste post, portanto, deixo aqui este clipe musical espetacular, da banda Arcade Fire - com letra traduzida logo abaixo - relacionado à sincera, dolorosa e importante jornada de uma mulher Trans, na própria compreensão e aceitação diante de sua real identidade de gênero e na luta por visibilidade, pelo reconhecimento social de que ela, assim como toda a população Trans, de fato existe:

Nós Existimos 
(We Exist – Arcade Fire)

Eles estão andando por aí, com a cabeça cheia de sons, agindo como se nós não existíssemos.
Eles entram na sala, e nos olham atravessado, falando como se nós não existíssemos.
Mas nós existimos.
Papai, é verdade, eu sou diferente de você, mas me diga por que eles me tratam assim.
Se você fosse embora, o que eu poderia dizer? Não seria a primeira traída por um beijo.
Talvez seja verdade, eles te encaram, quando você entra na sala. Diga-lhes que está tudo bem, encarem se quiserem, apenas nos deixem passar.
Apenas nos deixem passar.
Eles estão de joelhos, implorando-nos por favor, rezando para que nós não existamos.
Papai, está tudo bem, estou acostumada com eles agora, mas me diga por que eles me tratam assim? É porque nós fazemos assim.
Talvez seja verdade, eles te encaram, quando você entra na sala. Diga-lhes que tudo bem, encarem se quiserem, apenas nos deixem passar.
Apenas nos deixem passar.
Deixe-os encarar! Deixe-os encarar! Se isso é tudo que eles podem fazer.
Mas eu perderia meu coração se me afastasse de você.
Ah, papai, não vá embora. Você sabe que estou com muito medo. Mas você vai me ver afogar?
Você sabe que não vamos a lugar nenhum. Nós sabemos que somos jovens e, não brinca, estamos confusos. Mas você vai nos ver afogar?
O que você tem tanto medo de perder?
Você está de joelhos, implorando-nos por favor, rezando para que nós não existamos.
Você está de joelhos, implorando-nos por favor, rezando para que nós não existamos.
Mas nós existimos.
Nós existimos!


REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Allan et al. Transexual: essa é a pessoa que eu sou. 30 de outubro de 2017. Disponível em: <https://medium.com/laborat%C3%B3rio-da-not%C3%ADcia/transexuais-essa-%C3%A9-a-pessoa-que-eu-sou-94bc30e0042c> Acesso em: 22 de Junho de 2018.
ARAÚJO, Peu. Brasil lidera assassinatos de pessoas trans no mundo. 30 de janeiro de 2017. Disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/brasil-lidera-assassinatos-de-pessoas-trans-no-mundo-30012017?amp> Acesso em: 22 de junho de 2018.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federal do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL, Ancham. Transgênero, transexual, travesti: os desafios para a inclusão do grupo no mercado de trabalho. 10 de abril de 2017. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/blogs/ecoando/transgenero-transexual-travesti-os-desafios-para-a-inclusao-do-grupo-no-mercado-de-trabalho/> Acesso em: 22 de junho de 2018.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf> Acesso em 22 de junho de 2018.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, Resolução CFP N° 1/2018, de 29 de Janeiro de 2018.
DIAS, Diego Madi. Brincar de gênero, uma conversa com Berenice Bento. Cad. Pagu, n. 43. Campinas, jul/dez, 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332014000200475> Acesso em 29 de junho de 2018.
FLORES, David et al. Social Movement  Unionism and Neoliberalism in São Paulo, Brazil: Shifting Logics of Collective Action  in Telemarketing Labor Unions. Societies Without Borders, vol 6, n 1, p. 73-101, 2011.
GALVÃO, Bruno. A ética em Michel Foucault: do cuidado de si à estética da existência. Rev Intuitio. Porto Alegre, v. 7, n 1, jun 2014.
HAAS, Anna P., RODGERS, Phillip L., HERMAN, Jody L. Suicide Attempts Among Transgender and Gender Non-Conforming Adults. American Foundation For Suicide Prevention & The Williams Institute. January 2014. Disponível em: <https://williamsinstitute.law.ucla.edu/press/transgender-study-looks-at-exceptionally-high-suicide-attempt-rate/> Acesso em: 22 de junho de 2018.
MARANHÃO F, Eduardo Meinberg de Albuquerque.“Educar corretamente evitando aberrações”:
notas introdutórias sobre discursos punitivos/discriminatórios
acerca das homossexualidades e transgeneridades. Paralellus, v. 6, n. 12, p. 187-200, jan-jun, 2015.
MEDIAVILLA, Daniel. Depressão afeta 60% das pessoas transgênero. 27 de junho de 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/27/ciencia/1467025701_741836.html> Acesso em: 22 de junho de 2018.
MENDES, Adriana; FERREIRA, Paula. Transexuais já podem mudar nome em documentos nos cartórios de todo país. O Globo. Rio de Janeiro. 29 jun, 2018. Disponível em: <https://m.oglobo.globo.com/sociedade/transexuais-ja-podem-mudar-nome-em-documentos-nos-cartorios-de-todo-pais-22836060> Acesso em: 29 de junho de 2018.
PINTO, Thiago P. et al. Silicone líquido industrial para transformar o corpo: prevalência e fatores associados ao seu uso entre travestis e mulheres transexuais em São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública, v. 33, n. 7, 2017.
SILVA, Ana Carolina F. et al. Transgeneridade: Uma análise da representação da identidade do eu e do estigma nas produções audiovisuais recentes. Rev. Ártemis, v. 24, n. 1; p. 132-142, jul-dez, 2017.




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