A construção histórica do
sujeito moral no paradigma ético teve, ao longo do tempo e de estudos,
constantes reavaliações e atribuições de sentido. Por entre as diversas teorias
filosóficas ao longo da história, o que se percebe é, segundo Heidegger (1987, apud
GALVÃO, 2014), uma recorrente transfiguração e redução deste sujeito à forma
como ele se apresenta, pelo que nele surge, se efetua e se mostra ao mundo, o
que se realiza na physis, nas
aparências: nos entes. O ser, dessa forma, teria sido pensado de maneira
equivocada, sendo compreendido como um ente, um aparente. Compreendido, a
exemplo, como “ideia” em Platão, “razão” em Kant, “espírito absoluto” em Hegel,
“vontade de potência” em Nietzsche. O que se inicia, dessa forma, é uma
construção conceitual do homem enquanto objeto de conhecimento, desvinculando-o
de toda forma de relação de cuidado para consigo, visto que, para ter acesso à
verdade sobre si, basta conhecer toda a formação discursiva a seu respeito
(GALVÃO, 2014). Em outras palavras, durante muito tempo a sociedade se propôs a
produzir verdades sobre o ser humano, esvaziando-o de suas polissemias, suas
mais diversas possibilidades de simplesmente “vir-a-ser” para além do que
aparenta, como forma de deter um saber universal e uniformizante que se
sobrepusesse a ele para exercer controle, poder. Dessa forma, tomado como
substância permanente e imutável por definições conceituais cujas essências se
encontram nas aparências, nos juízos de valor atribuídos e compartilhados, o
“ser” vai perdendo seu horizonte de abertura às suas potencialidades, suas
possibilidades de existir no mundo (PESSOA, 2007, apud GALVÃO, 2014) e vai
gradativamente se sujeitando, psíquica e corporalmente, a instâncias de poder
que delimitam seu agir, pensar e existir em sociedade, moldando uma
subjetividade dócil, controlada (DELEUZE, 2005, apud GALVÃO, 2014). A
supervalorização de verdades universais no humanismo em suporte à questão “o
que é o ser humano?” e não “quem sou eu?”, contribuiu, desse modo, para um
ofuscamento da verdade e do sentido do ser, bem como para um assujeitamento a
uma vida regulamentada, nas suas mínimas configurações, seja na estrutura
padronizada de cotidiano em que o indivíduo existe e atua, seja na forma de se
vestir e se expressar, seja na sua forma de amar, sejam nos seus sonhos e
escolhas para o futuro, sejam em seus relacionamentos interpessoais. O tempo
passa e esquecemos que estamos esquecidos, retomando o pensamento Heideggeriano
(DELEUZE, 2005). Esquecidos de cuidar de nós mesmos. Pois vivemos numa
sociedade que, segundo Galvão (2014), ocupa nossa consciência com coisas que
não nos dizem respeito, e se dizem, não nos são propriamente. É uma realidade
que nos distrai de quem somos e faz com que tentemos sobreviver a uma forma de
vida massivamente monótona, superficial, padronizada, dócil, sem oscilações,
sem paixão e vontade, pois nossos reais desejos, sonhos e formas de expressão
são diariamente sublimados por definições ideais do que devemos ser, de modo a
exercer a produtividade social necessária, satisfazendo, em contrapartida, a
condição inerte de incapacidade para problematizar e reagir ao sistema, a uma
sociedade disciplinar em regime de biopoder, como Foucault bem discursa. Nessa
perspectiva, a realidade da população Trans merece destaque em sua luta diária
contra esse paradigma normatizante da vida, da subjetividade, da corporeidade e
da expressão do ser humano.
Identidade X Ideal
Segundo Silva et al.
(2017), Transgêneros são pessoas que se percebem como pertencentes a um gênero
que não condiz com o atribuído socialmente pela sua genitália de nascimento, e
este sentimento de discordância geralmente é experimentado desde a infância.
Ainda conforme a autora, e colaboradores, esta não identificação impulsiona o
sujeito a buscar por expressões que remetem às manifestações do gênero oposto,
como forma de integrar seu corpo à identidade do “eu ideal”, podendo recorrer,
como traz Jesus (2012), a transformações na forma de se vestir, tratamentos
hormonais e cirurgias. Neste sentido, é bastante pertinente pensar na
autopercepção desses sujeitos a partir de definições, visões e significações de
outrem, que podem influenciá-los consideravelmente a uma busca desenfreada por
se fazer mais adequado às expectativas inflexíveis da sociedade, diante do que
para esta melhor representaria um homem e uma mulher. Goffman (1988) traz muito
bem essa noção quando discursa sobre o conceito de “identidade do eu” como a
percepção que o indivíduo possui sobre si mesmo configurada a partir de como o
outro o enxerga, percebe e espera de sua conduta. São as normas sociais
definidas sobre o indivíduo, a conceituação construída sobre como cada um deve
ser. É como se tudo o que o sujeito é e almeja ser não o pertencesse. Como se
não possuísse liberdade para expressar a “sua” verdade, pois esta já está
estabelecida a seu respeito.
De forma a iniciar algumas
reflexões importantes sobre a questão, segue abaixo um vídeo da personagem
Nomi, da série Sense 8, em desabafo sobre sua história de descoberta e
aceitação diante de sua identidade de gênero:
Tente agora imaginar o
sofrimento de ter que satisfazer a uma imagem, a uma corporeidade e
expressividade distintas de você para ser aceito, para ganhar respeito e
dignidade - elemento que todos deveríamos ter por direito. Você se olha através
de um espelho e não se reconhece verdadeiramente em nenhuma configuração da
imagem, apenas no olhar de insatisfação por estar enclausurado numa realidade
que foi moldada para você, mas que não se adequa a toda a sua organização e
identidade psíquica. Dessa forma, pode existir sim
grande influência da
pressão social por adequação ao binarismo sexo/gênero idealmente construído sobre
o ritmo de transformação do sujeito Trans, levando-o a percorrer
muitas vezes caminhos de grande sofrimento e vulnerabilidade para maior
aceitação como ser humano, entretanto, essa busca por modificações
corporais fundamenta-se, antes de tudo, em sua
própria satisfação pessoal e no fortalecimento
de sua autoestima através da materialização dos seus desejos de possuir uma
matéria, uma forma existencial que mais expresse seu ser psíquico (SILVA et
al., 2017). Esta é a realidade pulsante do sujeito Trans. Uma realidade que até
pouco tempo era reconhecida como adoecimento psíquico.
A seguir, alguns
pensamentos da filósofa Judith Butler sobre a construção cultural em torno do
binarismo de gênero, e sua reflexão referente ao reducionismo que ele pode produzir diante das possibilidades diversas de expressão do ser: https://m.youtube.com/watch?v=9MlqEoCFtPM
(Des)construindo gêneros
É importante
destacar, a partir deste discurso de Judith, que há sim uma ordem hegemônica
binária naturalizada, e naturalizante, na questão sexo/gênero, a
cisnormatividade, que busca impor a cisgeneridade - a qual se configura como a
“condição de um sujeito que se sente confortável com o sistema sexo/gênero que
lhe foi outorgado no nascimento ou gestação” (MARANHÃO F, 2015, p. 191) - como
o padrão normal e ideal de ser, o que leva muitas pessoas a estranharem e,
assim, deslegitimarem os sujeitos Trans por suas singularidades de expressão.
Nessa perspectiva,
Berenice Bento, em conversa com Dias (2014), discursa bastante, sobre a questão
do biopoder, do controle sobre a vida humana, com base na imposição da norma
cisgênera pelo estado, numa perspectiva semelhante a Judith Butler:
“Para que serve gênero? O gênero serve
para construir corpos, é uma máquina de produção em série de seres humanos. Se
você tem pênis, é homem; se tem vagina, é mulher. A população é tratada em função da ideia do
masculino/homem e feminino/mulher. Em ambos os casos você deve ser
heterossexual. E há então um conjunto de dispositivos linguísticos, médicos,
religiosos [...] que se organiza e se estrutura a partir de uma engrenagem
bastante complexa para produzir uma afirmação sobre o ser: "eu sou uma
mulher". O que significa alguém afirmar isso? "Eu sou uma
mulher" e, portanto, "eu não sou um homem". As coisas têm nomes,
há coisas de meninos e coisas de meninas. Mas se o menino quer brincar com
coisas de meninas, qual o problema? Estamos ainda no campo das demarcações. Ao
produzir as identidades de homem e mulher com base na biologia, estamos
produzindo identidades de gênero a partir de um processo extremamente violento,
que está vinculado à produção de identidades sexuais. A produção do sujeito no
mundo segue um protocolo de gênero e de sexualidade. Se consideramos que esse
sistema de gênero não serve, pois produz exclusão e sofrimento, o que devemos
fazer? Quando falamos sobre as relações de poder, quando sugerimos que gênero
não deve ser um assunto da medicina, quando defendemos o radical direito à
autodeterminação de gênero, estamos buscando libertar o gênero do biopoder.”
Que foi exatamente o que se iniciou com o acontecimento do
dia 18 de junho de 2018, quando a população Trans foi finalmente retirada da
condição de transtorno mental pela Organização Mundial da Saúde, a qual
atualizou a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados com a Saúde - o CID 11 (MARTINELLI, 2018). Por trás desta conquista, há muito tempo
esperada, existe, contudo, toda uma história de sofrimento e desvalorização que
merece uma profunda reflexão.
Patologização do ser e o cuidado psicológico
Anteriormente classificados
como disforia de gênero, estes sujeitos não possuíam a possibilidade nem de se
autodeterminar, nem de modificar seus próprios corpos sem a opinião diagnóstica
de profissionais, única porta de entrada para o processo transexualizador, com
terapia hormonal e a cirurgia de transgenitalização (comumente conhecida como
“cirurgia de mudança de sexo”). O detalhe é que, para ser
diagnosticado, o sujeito deveria passar por critérios numerosos e limitantes,
satisfazendo toda uma ideia, um saber que se tinha sobre o que ele é, e
necessitando também retificar sofrimento psíquico em relação a seu corpo
perante um psicólogo, parte integrante da equipe multidisciplinar - composta
também por médicos, assistentes sociais e enfermeiros - que o acolhia neste
processo de mudança, mas que também o deslegitimava a partir da necessidade de
laudos relativos à sua “condição patológica”. Neste sentido,
eis uma importante reflexão: pessoas Cis modificam seus corpos todos os dias,
seja através de exercícios físicos, dietas, cirurgias ou mesmo esculpindo-os a
partir da arte. E estas transformações não são interpretadas ou definidas como
derivadas de um transtorno, de um adoecimento, nem compreendidas como
mutilações ou agressões à sua corporeidade. Desse modo, torna-se realmente bastante pertinente questionar: por
que pessoas Trans precisavam ser diagnosticadas como portadoras de um
transtorno mental para ter alguma liberdade perante seu próprio corpo?
Novamente, a quem pertencia esse corpo? E quanto à atuação psicológica nesse
processo? É fundamental e completamente necessário operar eticamente em
prol da valorização, respeito e não patologização do sujeito Trans, principalmente
numa área de atuação profissional tão sensível como a psicologia, que estuda
para promover um cuidado humanizado, empático e acolhedor para as pessoas,
visando seu bem-estar integral. Nessa perspectiva, conforme
o Conselho Federal de Psicologia (CFP), na resolução n° 1, de 29 de janeiro de
2018, é papel do(a) psicólogo(a), em sua
prática profissional, contribuir com seu conhecimento para a eliminação da
transfobia, reconhecendo e legitimando a autodeterminação desses sujeitos
diante de sua identidade de gênero, e consequentemente trabalhando de modo a
fortalecer e impulsionar mais autonomia destes sobre sua própria vida,
expressividade e subjetividade. Dessa forma, o(a) profissional de
psicologia não deve exercer ações que corroborem com
o preconceito, ser conivente com práticas ou pronunciamentos discriminatórios,
reforçar estigmas e estereótipos e muito menos atuar de forma a sustentar a
patologização dessa população, tornando-se, assim, de grande importância
sustentar a construção de uma prática profissional que lute ao lado destes
sujeitos na gradual desconstrução do preconceito na sociedade, aproximando-se,
por exemplo, de movimentos sociais, trocando experiências com esses indivíduos,
refletindo constantemente sobre sua própria atuação profissional, buscando
sempre atualizá-la e instrumentalizá-la para a defesa e o reconhecimento dos
direitos de pessoas transgêneras. Bem como para a promoção de maior qualidade
em sua saúde, em sua vida, operando pela perspectiva da dignidade humana e
contribuindo, consequentemente, para a eliminação da violência corporal e
simbólica a que pessoas Trans estão submetidas, tendo em vista o próprio papel
ético do psicólogo no auxílio ao processo de inclusão social desses sujeitos e
no reconhecimento de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza” (art° 5, Constituição Federal de 1988, p. 17). Neste
sentido, faz-se importante retornar à nossa atualidade e refletir sobre o
enfrentamento social ainda latente na realidade desses indivíduos, que ainda não possuem a garantia de seus direitos.
Dificuldades latentes da atualidade Trans
Podemos refletir,
primeiramente, sobre uma importante questão: como essa população mantém sua
sobrevivência com as exigências normativas sociais sustentando a perspectiva do
mundo do trabalho atual? Como incluir essa população na produtividade social se
o seu grande instrumento de interação, atividade e contato com o mundo é
rejeitado por diagramas padronizados de poder?
“A sucessão de exclusões – na família,
na escola e no mercado de trabalho – acaba fazendo com que as opções sejam
reduzidas à prostituição, ao tráfico de drogas ou ao trabalho em casas
noturnas”, discursa Silvia Cavallere, vice-presidente da União Nacional LGBT,
em reportagem ao jornal estadão (BRASIL, 2017).
Brasil (2017) aborda que,
segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais
(ANTRA), 90% das mulheres Trans, por exemplo,
adentram no mundo violento e perigoso da prostituição nas ruas brasileiras,
arriscando suas próprias vidas diariamente, por não conseguirem oportunidade no
mercado formal, devido ao preconceito e à baixa escolaridade, tendo em vista o
grande índice de evasão escolar - que permeia os 82%, segundo a Comissão de
Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (ALMEIDA et al., 2017). “E,
mesmo as graduadas e aptas a exercerem uma profissão de alto desempenho, por
vezes são recusadas por sua identidade de gênero, o que não deixa outra opção”
(BRASIL, 2017).
Angela Lopes, mulher Trans,
ex-diretora da Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual de São Carlos, em
reportagem ao jornal estadão (BRASIL, 2017), declara: “isso é um aprisionamento social.
A sociedade designou que esses seres humanos não
possuem potencialidades para exercer outra função que não seja o trabalho
sexual, aí elas são colocadas como objeto.”
Alguns transgêneros, porém,
conseguem emprego como operadores de telemarketing em empresas de Call Center. Consegue refletir sobre o
por quê? Os clientes não vão ter a possibilidade de olhar e analisar os corpos
de suas atendentes: “Você escuta minha voz, mas não sabe quem eu sou” (FLORES
et al., 2011, p. 88). Neste sentido, é curioso pensar o quanto a inclusão dessa
população por estas empresas pode estar relacionada à questão da invisibilidade
deste tipo de trabalho.
Nesta perspectiva, nota-se grande
pressão por imagem no mercado de trabalho, por aparência adequada às exigências
sociais, o que pode incentivar muitas pessoas transgêneras a acelerarem seu
processo de mudança, pondo em risco a sua própria saúde, seja aplicando
clandestinamente grande quantidade de hormônios aos seus corpos, seja
utilizando silicone líquido industrial para reforçar o ideal social construído
sobre seu gênero, como no caso de algumas mulheres Trans (PINTO et al., 2017). E a situação não estaciona aqui. O preconceito e a
discriminação são tão absurdamente presentes que geram graves problemas ao
bem-estar psíquico e físico dessa população, com índices de depressão chegando
a 60% em alguns países, segundo a revista the Lancet (MEDIAVILLA, 2016);
considerável presença da temática do suicídio, com a estimativa de 41% da
população Trans já ter atentado contra a própria vida (HAAS et al., 2014); e a prática
absurda e espantosa de crimes de ódio - sendo o Brasil, segundo relatório da
ONG Transgender Europe (TGEu), líder mundial na taxa de homicídios a pessoas
trans, cuja expectativa de vida desde 2013 não passa dos 35 anos, segundo dados
do IBGE (ARAÚJO, 2017). Ah, e nessa mesma nação ainda não existe uma lei que
regulamente de forma efetiva o uso do banheiro público por essa população,
espaço social tão íntimo, particular e necessário do nosso dia a dia.
Apesar desta difícil
realidade, uma conquista é certa: o nome social. Porém, é necessário se pensar
sobre o quanto essa medida se tornava uma solução provisória para um problema
que deveria de fato ser repensado e reavaliado de modo a facilitar o
reconhecimento e valorização da identidade de gênero de cada um.
Segue abaixo vídeo de
um Youtuber Trans partilhando
importante reflexão sobre a questão do nome social:
Antes, o que ocorria,
geralmente, eram extensos procedimentos burocráticos para a alteração do
prenome nos documentos, como bem retrata o Youtuber,
fato que deixava diversos Trans como reservistas, e os que conseguiam passavam
muitas vezes por longas etapas processuais, dentre elas a judicial. Essa
burocratização do processo era um fator que
trazia muitos prejuízos à autoestima do indivíduo Trans, o qual ficava sujeito
a vivenciar situações constrangedoras de ser designado por um nome com o qual
não se identificava, com a necessidade de ficar se explicando e se expondo,
desgastando sua energia psíquica e emocional, para defender sua identidade,
como se estivesse tentando conquistar algo que não é seu por direito. Neste
sentido, pensemos, por que não se promovia uma mudança direta e simples no nome
civil? É sob essa perspectiva que novas medidas foram enfim tomadas neste ano,
trazendo mais uma conquista para essa população.
A Corregedoria
Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), regulamentou,
no dia 29 de junho de 2018, mudança de nome e gênero para Transgêneros, em
cartórios de todo o país. Dessa forma, pessoas maiores de 18 anos podem fazer
alterações no registro civil, em certidões de nascimento e casamento com base
em sua autodeterminação referente à sua identidade de gênero e na confirmação
de documentos pessoais originais, sem necessitar apresentar uma ordem judicial
ou laudos psicológicos e médicos que comprovem mudança de sexo e/ou terapia
hormonal, os quais são mencionados como ponto facultativo complementar. Tal
medida, contudo, aflige paradoxalmente certa fragilidade à autonomia do sujeito
de se autodeclarar, como discute Maria Eduarda Aguiar - em reportagem feita por
Mendes, Ferreira (2018) ao jornal O Globo - advogada que, em 2017, foi a
primeira transexual no Brasil a obter mudança de nome na carteira profissional
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) :
“Não deveria haver nem menção a laudo médico, nem como documento complementar. Recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) se manifestou atestando que a transexualidade não é uma doença mental. A nossa briga é para que a transexualidade não seja encarada como algo patológico. Tenho uma preocupação se na aplicação da resolução os cartórios vão entender de forma correta o texto e não vão exigir esses documentos” — afirma.
Ainda segundo a advogada, outro ponto sensível do texto é a exigência de apresentação de diversas certidões para alterar as informações de nome e gênero (Ibidem, 2018):
“Levando em consideração que a população trans tem difícil acesso a quase tudo, o número de certidões exigidas é excessivo e torna o processo burocrático. Bastava que os próprios cartório fizessem essas pesquisas em seus bancos de dados” — critica Maria Eduarda, dizendo, por outro lado, que ainda assim a resolução é muito positiva: “De qualquer forma, a medida facilitou o acesso, porque as pessoas não terão seus pedidos negados de forma arbitrária, como ocorria antes. Não posso negar que é um avanço.”
“Não deveria haver nem menção a laudo médico, nem como documento complementar. Recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) se manifestou atestando que a transexualidade não é uma doença mental. A nossa briga é para que a transexualidade não seja encarada como algo patológico. Tenho uma preocupação se na aplicação da resolução os cartórios vão entender de forma correta o texto e não vão exigir esses documentos” — afirma.
Ainda segundo a advogada, outro ponto sensível do texto é a exigência de apresentação de diversas certidões para alterar as informações de nome e gênero (Ibidem, 2018):
“Levando em consideração que a população trans tem difícil acesso a quase tudo, o número de certidões exigidas é excessivo e torna o processo burocrático. Bastava que os próprios cartório fizessem essas pesquisas em seus bancos de dados” — critica Maria Eduarda, dizendo, por outro lado, que ainda assim a resolução é muito positiva: “De qualquer forma, a medida facilitou o acesso, porque as pessoas não terão seus pedidos negados de forma arbitrária, como ocorria antes. Não posso negar que é um avanço.”
Dessa forma, apesar de algumas
fragilidades, essas medidas representam, contudo, um marco para os direitos
Trans, e nos dão motivos para celebrar, como também para fortalecer movimentos
sociais que demandem por mais transformações políticas em prol desses
indivíduos, mostrando-nos o quanto é importante rever a lei de forma a não
necessitar de compensações, de soluções paliativas para as dificuldades
enfrentadas pelos transgêneros, mas de forma a atender e solucionar de fato o
que se demanda por essa população, que é o direito de
ser reconhecida em tudo aquilo que ela se identifica: em nome, em corpo, em
subjetividade. É o direito básico à dignidade humana que tanto prega o art° 1
da Constituição Federal (1988, p. 15), quanto da Declaração Universal de
Direitos Humanos (1948, p. 4). Não devendo ser, pois, a opinião de um juiz, um
psiquiatra, um psicólogo ou da sociedade como um todo o marco decisório para
determinar o “ser” desse sujeito. Mas o próprio reconhecimento e
autodeterminação deste sobre si mesmo, que, como bem discursa Foucault, trazido
por Galvão (2014), ao se ocupar de si e se distanciar um pouco dos enquadres e
demandas padronizadas do mundo, pode se autoconhecer e refletir sobre o
contexto em que se situa, para orientar sua forma de cuidado a si próprio de
modo a valorizar seu verdadeiro ser e existir no mundo, alcançando, enfim,
momentos de liberdade e dando a si mesmo regras de existência distintas das
estabelecidas pelas instâncias de poder opressoras.
https://youtu.be/MRJYPG03XRE (Música “Be Yourself”, do
cantor Harrison Storm, que achei
bastante pertinente à jornada de
coragem e enfrentamento da população Trans na
busca por viver seu verdadeiro eu).
Neste sentido, torna-se
fundamental instrumentalizar a prática psicológica de forma a se implicar na
defesa e no cuidado a essa população, que apesar de possuir algumas conquistas
importantes, ainda precisa trilhar um longo caminho de luta por reconhecimento,
visibilidade, garantia de direitos e abertura social como um todo, caminho que
a deixa tão vulnerável tanto física como psicologicamente, necessitando, pois,
de suporte humanizado e empático de profissionais que devem operar ética e
moralmente para seu bem-estar biopsicossocial, em suas mais diversas expressões
do ser.
É assim, por fim, que
podemos mediar estes sujeitos na busca por garantir sua oportunidade de
esculpir uma vida mais “bela”, mais agradável aos seus próprios olhos, gerando
uma noção de estética para a existência, uma noção de obra de arte, que se
traduz no modo de ser de toda e qualquer produção original, no sentido da
criação, que faz aparecer o que, antes, não aparecia (PESSOA, 2013, apud
GALVÃO, 2017), ou seja, através de cada configuração singular da subjetividade,
corporeidade e expressividade humanas que emergem na existência e têm a
possibilidade de se reinventar a cada instante do viver.
Como conclusão deste
post, portanto, deixo aqui este clipe musical
espetacular, da banda Arcade Fire - com letra traduzida logo abaixo -
relacionado à sincera, dolorosa e importante jornada de uma mulher Trans, na
própria compreensão e aceitação diante de sua real identidade de gênero e na
luta por visibilidade, pelo reconhecimento social de que ela, assim como toda a
população Trans, de fato existe:
Nós Existimos
(We Exist – Arcade Fire)
Eles estão andando por aí,
com a cabeça cheia de sons, agindo como se nós não existíssemos.
Eles entram na sala, e nos
olham atravessado, falando como se nós não existíssemos.
Mas nós existimos.
Papai, é verdade, eu sou
diferente de você, mas me diga por que eles me tratam assim.
Se você fosse embora, o que
eu poderia dizer? Não seria a primeira traída por um beijo.
Talvez seja verdade, eles
te encaram, quando você entra na sala. Diga-lhes que está tudo bem, encarem se
quiserem, apenas nos deixem passar.
Apenas nos deixem passar.
Eles estão de joelhos,
implorando-nos por favor, rezando para que nós não existamos.
Papai, está tudo bem, estou
acostumada com eles agora, mas me diga por que eles me tratam assim? É porque
nós fazemos assim.
Talvez seja verdade, eles
te encaram, quando você entra na sala. Diga-lhes que tudo bem, encarem se
quiserem, apenas nos deixem passar.
Apenas nos deixem passar.
Deixe-os encarar! Deixe-os
encarar! Se isso é tudo que eles podem fazer.
Mas eu perderia meu coração
se me afastasse de você.
Ah, papai, não vá embora.
Você sabe que estou com muito medo. Mas você vai me ver afogar?
Você sabe que não vamos a
lugar nenhum. Nós sabemos que somos jovens e, não brinca, estamos confusos. Mas
você vai nos ver afogar?
O que você tem tanto medo
de perder?
Você está de joelhos,
implorando-nos por favor, rezando para que nós não existamos.
Você está de joelhos,
implorando-nos por favor, rezando para que nós não existamos.
Mas nós existimos.
Nós existimos!
REFERÊNCIAS
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assassinatos de pessoas trans no mundo. 30 de
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do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
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estigma nas produções audiovisuais recentes. Rev. Ártemis, v. 24, n. 1; p. 132-142, jul-dez, 2017.
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