terça-feira, 24 de julho de 2018

Cura(?) Gay: Sobre Cuidado, Sofrimento e Direitos Humanos


Por: André Luiz, Eduarda Tamires,
Marcos Gandelsman e Priscila Santana


Imagine que você é psicóloga/psicólogo e lhe chega um dia no consultório um rapaz, com cerca de dezenove anos, muito cabisbaixo e pouco comunicativo. Fica aparente pelo rubor em seu rosto e pela irritação dos olhos que chorava não faz muito tempo. Você pergunta o que o motivou a ir ali hoje, e ele lhe responde que quer se curar de uma coisa que há muito tempo lhe faz sofrer: sua homossexualidade. O que responder? Como reagir? A quem estiver disposto propomos neste texto um passeio por essa discussão com base na psicologia e em algumas questões atuais desse universo.

Um dos grandes desafios da atualidade reside no reconhecimento, na compreensão e no manejo das diferenças. A principal discussão dentro deste espectro talvez seja justamente a dos gêneros, das afetividades e das sexualidades humanas. As confusões, incertezas e desentendimentos muitas vezes apontam uma certa falta de esclarecimento, de se conhecer melhor as distinções e, claro, o preconceito que perpassa as noções de sexo, gênero, identidade de gênero e orientação afetivo-sexual. Para quem quiser ler um pouco mais sobre essas questões, pode acessar esta página aqui [goo.gl/f182Tu], mas de forma sintética, trazemos este esquema em imagem, que tiramos do mesmo link:



Nessa perspectiva, tanto a identidade de gênero quanto a orientação afetivo-sexual dizem respeito a diferentes modos de se reconhecer e se relacionar consigo e com os outros. Mas a aceitação destes conceitos e seus sentidos não é universal. Uma das maiores polêmicas gira em torno da chamada “cura gay”, e envolve questões da ordem política, religiosa, psicológica, de cidadania e de Direitos Humanos. Justamente pela complexidade do tema, ele se faz presente em muitas rodas de conversa diferentes, ainda que em geral de forma bastante superficial. Com sua forma irreverente, até mesmo o grupo Porta dos Fundos já tocou tratou deste assunto: [goo.gl/55aYib].

A “cura gay” segundo seus defensores seria uma terapia de ressignificação da sexualidade do sujeito, voltada para que este deixe de sentir atração por pessoas do mesmo sexo e desenvolva uma atração sexual por pessoas do sexo oposto. Para quem defende essa ideia, a homossexualidade é muitas vezes lida como fruto de um trauma de infância, e a cura do trauma vem com a produção de novos sentidos tidos como “saudáveis” à sexualidade desse sujeito. Sobre estas práticas, o canal Nerdologia produziu este esclarecedor vídeo: [goo.gl/ztMAV1].

Como fica claro nele, as pesquisas nesta área refutam a validade das terapias de reorientação sexual, e o Conselho Federal de Psicologia foi incluso pioneiro no Brasil a determinar a proibição de práticas profissionais que tivessem esse intuito, ainda em 1999. Essa ideia de cura está vem de uma visão ultrapassada, sem respaldo científico, que compreende a homossexualidade como doença. Vale ressaltar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a homossexualidade é uma variação normal da sexualidade humana e não deve ser entendida como doença desde a década de 1990.

Em 2011 um projeto de lei foi apresentado por João Campos do PSDB/GO, que poderia ter dado um fim precoce a essa história de respeito à diversidade afetivo-sexual em nosso país, mas que foi felizmente arquivado [goo.gl/7xz4gt]. Tinha como objetivo anular dois artigos do documento de 1999 do Conselho, que falam que profissionais de psicologia não podem promover práticas de patologização da homossexualidade nem se pronunciar publicamente “de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.” Mais atual, e potencialmente mais perigoso, é o projeto de lei 4931 de 2016 [goo.gl/Rs5MdJ], apresentado por Ezequiel Teixeira do PTN-RJ. O decreto autorizaria psicólogas e psicólogos a usar a psicoterapia para ajudar homossexuais na mudança da sua orientação sexual caso estes clientes desejem isso. Seu autor argumenta no texto que pessoas que querem mudar da homossexualidade para a heterossexualidade (mas não no processo inverso, ou seja, heterossexuais que queiram se tornar homossexuais) devem ter direito de ser acompanhadas nesse processo por uma terapêutica que torne isso possível.

Com base nesse projeto o debate vem se arrastando nos meios legislativos e levantado calorosas discussões sobre sexualidade e homoafetividade. Lembram do vídeo do Nerdologia que linkamos? Tanto a ciência quanto a classe dos psicólogos no Brasil e no mundo se opõem a este tipo de projeto.

Com isso tudo dito, retornamos àquela pergunta do início, sobre o que fazer quando chega no consultório uma pessoa que pede, que demanda da gente deixar de ser gay, lésbica, bi, trans ou qualquer outra referência a identidades de gênero e orientações afetivo-sexuais não normativas. Quanto a isso, existem alguns pontos que acreditamos devem orientar o atendimento a um caso como este.

O primeiro ponto que precisa se ter claro é que justamente por conta do preconceito, da discriminação, da não aceitação social, uma grande parte do sofrimento associado à experiência de não ser hétero, não estar na norma binária de sexualidade e gênero persiste. Em outras palavras, como se argumenta neste texto do Conselho Federal de Psicologia [goo.gl/9hmGXP], “não se trata de negar o sofrimento que as pessoas homossexuais são acometidas decorrentes da LGBTfobia, porém entender que o sofrimento não está nas orientações sexuais em si mesmas (homossexualidade, bissexualidade ou heterossexualidade), mas relacionadas às condições sociais que atribuem sentido pejorativo às suas expressões e vivências, prejudicando a qualidade da vida psíquica e social”. Ali no momento do atendimento/consulta/análise, o espaço deve estar disponível e favorecer que o sujeito apresente, fale, possa expressar e dar sentido a tudo aquilo de sofrido que vivencia, e é papel do profissional nesta relação acolher, escutar... enfim, dar a oportunidade à pessoa de falar daquilo que sente quanto a tudo isso, das dificuldades que enfrenta diariamente por conta desta questão.

Sobre o sofrimento que estes processos podem acarretar, vale a pena conferir dois vídeos do Youtube, um deles produzido pelo canal “Põe na Roda”, com depoimento de pessoas que passaram por experiências com terapias de reorientação sexual [goo.gl/KBkgGk], e o documentário “Bichas”, que traz depoimentos de diversos homens gays acerca de suas experiências, e das dificuldades que enfrentaram em suas descobertas quanto a sua sexualidade e afetividade [goo.gl/tUVjJP].

Através desse dizer, no processo terapêutico, o sujeito poderá cada vez mais se descobrir, se reconhecer, entender o que lhe diz respeito e o que é dos outros. Assim, o esforço vai no sentido de permitir naquele espaço que esse sujeito tenha condição de situar o que de fato é seu desejo, sua vontade, sua verdade, e o que daquela demanda de mudar não vem de um desejo externo, de uma vontade externa, das verdades que circulam e que determinam que esse tipo de experiência é, por falta de uma palavra melhor, errada. Essa culpa social é uma das questões fundamentais que organizaram a clínica psicológica. De forma geral, podemos argumentar que para as psicologias, nunca vai estar errado ser aquilo que somos, e que cada forma de “ser” é singular, ou seja, só pode ser de fato determinada pelo próprio sujeito. O compromisso social da psicologia é proteger a integridade psíquica e emocional das pessoas e zelar pelo respeito à subjetividade e singularidade delas.

Para os que se colocam contrários a essa ideia do gênero e da diversidade de orientações afetivo-sexuais, a noção de uma sexualidade subjetiva que salte para fora da normalidade binária dos sexos é aproximada muitas vezes de práticas como zoofilia, necrofilia e pedofilia, acompanhada de referências pejorativas a uma erotização e abuso infantil e um projeto social e político de desconstrução da família e dos valores. Para nós, os direitos de ser como queremos, de nos identificarmos e sermos reconhecidos socialmente da forma que preferimos e de não ser julgados e depreciados por conta das nossas escolhas afetivas são Direitos Humanos. Sua violação produz ainda muito sofrimento e essa discussão não é só uma questão de opinião. Falar como os críticos é não levar em consideração as pessoas que vivem isso, seja as milhares de pessoas que mundo afora sofrem ainda com práticas “terapêuticas” ultrapassadas e torturantes, orientadas a “se curar” de algo que é incurável, seja as milhões de vítimas da LGBTfobia que ainda são agredidas física e verbalmente. No Brasil os números crescem, e ano passado chegamos à marca de 387 assassinatos e 58 suicídios de pessoas LGBT, como aponta o relatório organizado pelo Grupo Gay da Bahia [goo.gl/x4SmZx]

Nós, psicólogas e psicólogos, quanto às pessoas nos contentamos em cuidar, acolher e escutar. Nossa crítica deve se voltar à sociedade e às instituições que discriminam, às violências cotidianas que são permitidas (tanto as já conhecidas quanto aquelas das quais poucos ainda falam), para dizer que está errado oprimir, humilhar, depreciar. Para dizer que está errado querer que todo mundo seja de um só jeito, porque somos muitos, somos diversos, e isso é lindo. O feio está na desumanização, nas violações aos Direitos Humanos e à dignidade da pessoa. Porque são nossos direitos e deveres compartilhados como humanidade que nos unem, e que devemos estender a todas e todos. Como uma cartilha do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo [goo.gl/JB6eHM] argumenta:

“Os seres humanos são iguais em humanidade.
Ninguém é menos ou mais humano do que outro.
(...)
Temos que ser amigos e amigas dos direitos humanos. Temos que defendê-los. 

Respeitar os direitos humanos é reconhecer que todo ser humano é digno. 
A dignidade é inseparável do ser humano.”



Outras Referências:

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. CFP defende e Justiça mantém Resolução 1/99. 2016. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/cfp-defende-e-justica-mantem-resolucao-199/> Acesso em 18 de junho de 2018.

GROSSI, M. P. Identidade de Gênero e Sexualidade. Coleção Antropologia em Primeira Mão. PPGAS/UFSC, 1998.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995,


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