Por: André Luiz, Eduarda Tamires,
Marcos Gandelsman e Priscila Santana
Imagine
que você é psicóloga/psicólogo e lhe chega um dia no consultório um rapaz, com
cerca de dezenove anos, muito cabisbaixo e pouco comunicativo. Fica aparente
pelo rubor em seu rosto e pela irritação dos olhos que chorava não faz muito
tempo. Você pergunta o que o motivou a ir ali hoje, e ele lhe responde que quer
se curar de uma coisa que há muito tempo lhe faz sofrer: sua homossexualidade.
O que responder? Como reagir? A quem estiver disposto propomos neste texto um
passeio por essa discussão com base na psicologia e em algumas questões atuais
desse universo.
Um
dos grandes desafios da atualidade reside no reconhecimento, na
compreensão e no manejo das diferenças. A principal discussão dentro deste
espectro talvez seja justamente a dos gêneros, das afetividades e das
sexualidades humanas. As confusões, incertezas e desentendimentos muitas vezes
apontam uma certa falta de esclarecimento, de se conhecer melhor as distinções
e, claro, o preconceito que perpassa as noções de sexo, gênero, identidade de
gênero e orientação afetivo-sexual. Para quem quiser ler um pouco mais sobre
essas questões, pode acessar esta página aqui [goo.gl/f182Tu], mas de forma
sintética, trazemos este esquema em imagem, que tiramos do mesmo link:
Nessa
perspectiva, tanto a identidade de gênero quanto a orientação afetivo-sexual dizem
respeito a diferentes modos de se reconhecer e se relacionar consigo e com os
outros. Mas a aceitação destes conceitos e seus sentidos não é universal. Uma
das maiores polêmicas gira em torno da chamada “cura gay”, e envolve questões
da ordem política, religiosa, psicológica, de cidadania e de Direitos Humanos. Justamente
pela complexidade do tema, ele se faz presente em muitas rodas de conversa
diferentes, ainda que em geral de forma bastante superficial. Com sua forma
irreverente, até mesmo o grupo Porta dos Fundos já tocou tratou deste assunto:
[goo.gl/55aYib].
A
“cura gay” segundo seus defensores seria uma terapia de ressignificação da
sexualidade do sujeito, voltada para que este deixe de sentir atração por
pessoas do mesmo sexo e desenvolva uma atração sexual por pessoas do sexo
oposto. Para quem defende essa ideia, a homossexualidade é muitas vezes lida
como fruto de um trauma de infância, e a cura do trauma vem com a produção
de novos sentidos tidos como “saudáveis” à sexualidade desse sujeito. Sobre
estas práticas, o canal Nerdologia produziu este esclarecedor vídeo: [goo.gl/ztMAV1].
Como
fica claro nele, as pesquisas nesta área refutam a validade das terapias de
reorientação sexual, e o Conselho Federal de Psicologia foi incluso pioneiro no
Brasil a determinar a proibição de práticas profissionais que tivessem esse
intuito, ainda em 1999. Essa ideia de cura está vem de uma visão ultrapassada,
sem respaldo científico, que compreende a homossexualidade como doença. Vale
ressaltar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a
homossexualidade é uma variação normal da sexualidade humana e não deve ser
entendida como doença desde a década de 1990.
Em
2011 um projeto de lei foi apresentado por João Campos do PSDB/GO, que poderia ter
dado um fim precoce a essa história de respeito à diversidade afetivo-sexual em
nosso país, mas que foi felizmente arquivado [goo.gl/7xz4gt]. Tinha como
objetivo anular dois artigos do documento de 1999 do Conselho, que falam que
profissionais de psicologia não podem promover práticas de patologização da
homossexualidade nem se pronunciar publicamente “de modo a reforçar os
preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de
qualquer desordem psíquica.” Mais atual, e potencialmente mais perigoso, é o projeto
de lei 4931 de 2016 [goo.gl/Rs5MdJ], apresentado por Ezequiel Teixeira do
PTN-RJ. O decreto autorizaria psicólogas e psicólogos a usar a psicoterapia
para ajudar homossexuais na mudança da sua orientação sexual caso estes
clientes desejem isso. Seu autor argumenta no texto que pessoas que querem
mudar da homossexualidade para a heterossexualidade (mas não no processo
inverso, ou seja, heterossexuais que queiram se tornar homossexuais) devem ter
direito de ser acompanhadas nesse processo por uma terapêutica que torne isso
possível.
Com
base nesse projeto o debate vem se arrastando nos meios legislativos e
levantado calorosas discussões sobre sexualidade e homoafetividade. Lembram do
vídeo do Nerdologia que linkamos? Tanto a ciência quanto a classe dos
psicólogos no Brasil e no mundo se opõem a este tipo de projeto.
Com
isso tudo dito, retornamos àquela pergunta do início, sobre o que fazer quando
chega no consultório uma pessoa que pede, que demanda da gente deixar de ser
gay, lésbica, bi, trans ou qualquer outra referência a identidades de gênero e
orientações afetivo-sexuais não normativas. Quanto a isso, existem alguns
pontos que acreditamos devem orientar o atendimento a um caso como este.
O
primeiro ponto que precisa se ter claro é que justamente por conta do
preconceito, da discriminação, da não aceitação social, uma grande parte do
sofrimento associado à experiência de não ser hétero, não estar na norma
binária de sexualidade e gênero persiste. Em outras palavras, como se argumenta
neste texto do Conselho Federal de Psicologia [goo.gl/9hmGXP], “não se trata de
negar o sofrimento que as pessoas homossexuais são acometidas decorrentes da
LGBTfobia, porém entender que o sofrimento não está nas orientações sexuais em
si mesmas (homossexualidade, bissexualidade ou heterossexualidade), mas
relacionadas às condições sociais que atribuem sentido pejorativo às suas
expressões e vivências, prejudicando a qualidade da vida psíquica e social”. Ali
no momento do atendimento/consulta/análise, o espaço deve estar disponível e
favorecer que o sujeito apresente, fale, possa expressar e dar sentido a tudo
aquilo de sofrido que vivencia, e é papel do profissional nesta relação
acolher, escutar... enfim, dar a oportunidade à pessoa de falar daquilo que
sente quanto a tudo isso, das dificuldades que enfrenta diariamente por conta
desta questão.
Sobre
o sofrimento que estes processos podem acarretar, vale a pena conferir dois
vídeos do Youtube, um deles produzido pelo canal “Põe na Roda”, com depoimento
de pessoas que passaram por experiências com terapias de reorientação sexual [goo.gl/KBkgGk],
e o documentário “Bichas”, que traz depoimentos de diversos homens gays acerca
de suas experiências, e das dificuldades que enfrentaram em suas descobertas
quanto a sua sexualidade e afetividade [goo.gl/tUVjJP].
Através
desse dizer, no processo terapêutico, o sujeito poderá cada vez mais se
descobrir, se reconhecer, entender o que lhe diz respeito e o que é dos outros.
Assim, o esforço vai no sentido de permitir naquele espaço que esse sujeito
tenha condição de situar o que de fato é seu desejo, sua vontade, sua verdade,
e o que daquela demanda de mudar não vem de um desejo externo, de uma vontade
externa, das verdades que circulam e que determinam que esse tipo de
experiência é, por falta de uma palavra melhor, errada. Essa culpa social é uma
das questões fundamentais que organizaram a clínica psicológica. De forma
geral, podemos argumentar que para as psicologias, nunca vai estar errado ser
aquilo que somos, e que cada forma de “ser” é singular, ou seja, só pode ser de
fato determinada pelo próprio sujeito. O compromisso social da psicologia é proteger
a integridade psíquica e emocional das pessoas e zelar pelo respeito à
subjetividade e singularidade delas.
Para
os que se colocam contrários a essa ideia do gênero e da diversidade de orientações
afetivo-sexuais, a noção de uma sexualidade subjetiva que salte para fora da
normalidade binária dos sexos é aproximada muitas vezes de práticas como
zoofilia, necrofilia e pedofilia, acompanhada de referências pejorativas a uma
erotização e abuso infantil e um projeto social e político de desconstrução da
família e dos valores. Para nós, os direitos de ser como queremos, de nos
identificarmos e sermos reconhecidos socialmente da forma que preferimos e de
não ser julgados e depreciados por conta das nossas escolhas afetivas são
Direitos Humanos. Sua violação produz ainda muito sofrimento e essa discussão
não é só uma questão de opinião. Falar como os críticos é não levar em consideração
as pessoas que vivem isso, seja as milhares de pessoas que mundo afora sofrem
ainda com práticas “terapêuticas” ultrapassadas e torturantes, orientadas a “se
curar” de algo que é incurável, seja as milhões de vítimas da LGBTfobia que
ainda são agredidas física e verbalmente. No Brasil os números crescem, e ano
passado chegamos à marca de 387 assassinatos e 58 suicídios de pessoas LGBT,
como aponta o relatório organizado pelo Grupo Gay da Bahia [goo.gl/x4SmZx]
Nós,
psicólogas e psicólogos, quanto às pessoas nos contentamos em cuidar, acolher e
escutar. Nossa crítica deve se voltar à sociedade e às instituições que
discriminam, às violências cotidianas que são permitidas (tanto as já
conhecidas quanto aquelas das quais poucos ainda falam), para dizer que está
errado oprimir, humilhar, depreciar. Para dizer que está errado querer que todo
mundo seja de um só jeito, porque somos muitos, somos diversos, e isso é lindo.
O feio está na desumanização, nas violações aos Direitos Humanos e à dignidade
da pessoa. Porque são nossos direitos e deveres compartilhados como humanidade
que nos unem, e que devemos estender a todas e todos. Como uma cartilha do
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo [goo.gl/JB6eHM] argumenta:
“Os
seres humanos são iguais em humanidade.
Ninguém
é menos ou mais humano do que outro.
(...)
Temos
que ser amigos e amigas dos direitos humanos. Temos que defendê-los.
Respeitar os direitos humanos é reconhecer que todo ser humano é digno.
A dignidade é inseparável do ser humano.”
Outras
Referências:
CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA. CFP defende e Justiça mantém Resolução 1/99. 2016.
Disponível em: <https://site.cfp.org.br/cfp-defende-e-justica-mantem-resolucao-199/>
Acesso em 18 de junho de 2018.
GROSSI,
M. P. Identidade de Gênero e Sexualidade. Coleção Antropologia em Primeira Mão.
PPGAS/UFSC, 1998.
SCOTT,
Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995,
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