sábado, 24 de janeiro de 2015

A Fome na Abundância

Por: Shirlaine Rosaly
                                                                               Verônica Barros

Vivemos numa época marcada por um grande desenvolvimento científico, onde encontramos soluções para diversos problemas, inclusive tecnologias agrícolas avançadas que nos permitiram um aumento considerável na produção de alimentos. No entanto, ainda há um grande número de pessoas passando fome no mundo, o que parece contraditório por ser exatamente no momento em que conseguimos produzir uma quantidade de alimentos suficiente para alimentar toda a população mundial. Portanto, o que poderia já ter sido extinto ainda persiste entre nós, o que não faz sentido. Outra contradição que encontramos é o aumento da obesidade, principalmente nos países industrializados. Enquanto alguns estão morrendo por não terem o que comer, outros podem morrer por comerem demais. Os preços dos alimentos cada vez mais atingem níveis recordes no mundo, o que os torna inacessíveis à população de baixa renda. Com isso a fome cresce e há muita revolta. 
 Segundo um estudo realizado pela ONU (Organização das Nações Unidas) 30% de toda produção de alimento do mundo acaba indo para o lixo, o que equivale a 1,3 bilhões de toneladas, o suficiente para alimentar cerca de 47 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe. Aqui no Brasil, a CEASA-RJ, deu início há três anos um sistema de coletas de alimentos doados pelos comerciantes após à observação de um grande desperdício que ocorria porque os alimentos eram jogados no lixo por não possuírem mais valor comercial, apesar de estarem em condições de serem consumidos. Chegam a arrecadar 80 toneladas por mês que são doadas a 120 instituições filantrópicas e a 5.000 famílias de baixa renda. Uma das instituições beneficiadas é a APAE-Rio que recebe duas remessas de alimentos por mês, o que proporciona uma refeição a mais às crianças e adolescentes que atendem.[1]


Talvez uma ação isolada não resolva o problema da fome no mundo, mas pode servir de exemplo para inspirar novos projetos como esse em outras partes do mundo. Essa ação passa pelo critério de utilidade de Stuart Mill[2], pois tem consequências boas para um grande número de pessoas, contribuindo para o seu bem-estar proporcionando felicidade geral, tanto para quem recebe, como para quem doa. Essa felicidade a que ele se refere não possui um sentido individual como estamos acostumados, mas de um bem-estar coletivo. De acordo com a ética utilitarista o bem é o que minimiza a dor e maximiza os benefícios para um número maior de pessoas.
Ações como essas demonstram o quanto as pessoas que decidem realizá-las estão preocupadas mais com o interesse da totalidade do que com seus próprios interesses, pois exige uma certa dedicação de tempo, habilidades e até de recursos financeiros para conseguir que esses alimentos ainda cheguem ao seu destino em condições de consumo. Além do benefício de aliviar a fome de algumas pessoas, indiretamente todas as pessoas também estão sendo beneficiadas com a redução do lixo que contamina a terra, portanto, é também uma questão ambiental.
Aristóteles já falava da importância do saber prático do bem no que se refere à ética, nesse sentido devem ser estabelecidas as melhores condições para que se alcance o objetivo primordial que é a felicidade ou a “eudaimonia”. A pessoa que pratica uma ação em benefício do outro, também está obtendo benefício próprio, uma vez que o termo “eudaimonia” entende-se como bem-estar sobre aquilo que se realiza. Como também acreditava que as palavras eram insuficientes para nos tornarmos bons, que apesar de parecerem ter poder para estimular as pessoas de espírito generoso, são “impotentes para incitar a maioria das pessoas à prática da excelência moral”. [4] A “eudaimonia” é expressada nas palavras de Lecildo Ribeiro, um produtor rural, ao ser questionado sobre sua decisão de doar mercadoria para o projeto: “tem muita gente precisando, então eu tenho prazer de fazer isso, essa doação.” [1] 

 Maria Helena, uma recifence indignada por presenciar uma cena de uma pessoa catando e comendo lixo numa praça pública, tem a opinião de que permitir que outras pessoas passem fome possa ser uma atitude tão violenta quanto outras formas de violência mais evidentes. [3] Um outro exemplo de indignação encontramos nas palavras de Manoel Bandeira:

"Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem."



Presenciar ou ter conhecimento de uma cena como essa pode ser um momento de refletirmos sobre o porquê de pessoas estarem disputando sua sobrevivência com outros animais quando há abundância de alimentos. Podemos nos indignar como Maria Helena e Manuel Bandeira, agir como os comerciantes da CEASA-Rio ou simplesmente nos acostumar a ponto de se tornar uma cena tão comum que faça parte de nosso cenário. 



[2] Marcondes, D. (1953). Stuart Mill. In:_____Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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