quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

"Hoje eu recebi flores"

O conflito da mulher diante de uma sociedade que incentiva e ao mesmo tempo delibera a omissão da agressão física doméstica

Por Bianca Falcão e Luyse Nunes

Há muito tempo sabe-se que o problema da violência doméstica é mais do que uma questão cultural associada à falta de instrução ou baixa renda. A violência doméstica contra a mulher e a morte como uma possível consequência desse ato, apresenta números vergonhosos em nosso país, como por exemplo: “a cada hora, dez mulheres são vítimas de maus tratos”, segundo a central de atendimento à mulher (http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8561/A-violencia-domestica-no-Brasil).  Mais que os números expressivos, são as histórias por trás de cada um. Nessas trágicas histórias, muitas vezes as mulheres são oprimidas por serem fomentadas a não serem fracas e a não se deixarem agredir, reduzindo a questão a uma falta de coragem e de vontade de não ser agredida. Tal pensamento reflete a culpabilidade da mulher diante da sua própria agressão ou até morte, como se o direito da mulher estivesse implicado na obrigação dela de sair daquela situação. Por que então as mulheres não exercem esse direito de acusar seus companheiros? Será que elas não denunciam porque gostam de sofrer, como é ironizado na nossa sociedade?
Como exemplo dessa culpabilidade, há um vídeo intitulado “Hoje eu recebi flores” que aponta a questão da violência doméstica contra a mulher, mas que apesar de se tratar de um vídeo em favor de um projeto que: “Visa enfatizar os números vergonhosos da violência contra a mulher no Brasil, sensibilizar a sociedade dando um novo enfoque ao problema, gerar debates e mobilizações, levar informação e cobrar melhores estruturas para acolher a mulher em risco”, segundo apresentado no blog (http://projeto5760.blogspot.com.br/) que serve de base para as iniciativas. Ele fomenta a ideia de que a mulher foi fraca ao se deixar agredir e não reagir diante das agressões, nesse caso físicas, como é apresentado na frase final do vídeo: “Se eu tivesse tido coragem o suficiente e força para deixa-lo, hoje, eu não teria recebido flores”.
Nas discussões sobre o tema em questão, o fator medo, sempre é citado. O medo do companheiro pelas suas ameaças, medo de prejudicar a família, os possíveis filhos, medo do que os outros vão pensar quando souberem, medo do companheiro ser preso (já que muitas realmente os amam), medo de ficar sozinha, medo de não ter como sobreviver financeiramente. O medo é a resposta mais estreita e óbvia nesse assunto. Mas porque surgem esses medos?
Baseado nisso, podemos trazer a noção de maturidade ética para Kant, que apresenta uma tríade conflituosa sobre a formação do que é Ético para o ser. Um primeiro ponto é o código - esse código é o construído pela sociedade e é o que a rege. No caso da mulher temos a Lei Maria da Penha no contexto brasileiro, tão vangloriada pela sua existência, mas ainda problemática na sua aplicabilidade, porque apesar da eficiência judicial, o principal fator necessário para sua execução, que é a denúncia, muitas vezes não é realizada. Então, a mulher tem algo que a defende, que diz pra ela: “Você não precisa ser agredida, nós resolveremos para você”.
Assim surge o segundo ponto proposto por Kant, que é o da influência dos outros, da sociedade em que ela está inserida. Essa sociedade é a mesma que cria os códigos, mas que mesmo dizendo: “Denuncie!”, ela também diz: “O marido ou companheiro, a família é a sua essência, é o que você é, você vai querer perder tudo isso? E consequentemente perder a si mesma?”.
As instituições de poder, como é proposto por Foucault, desde a gestação dos seres, já apresentam como você deve ser: as escolas com a apreensão do conhecimento metódico, o hospital pela formalização da normalidade, os presídios como punição ao comportamento desviante das regras e principalmente, a instituição mais poderosa de todas, a família. Então, uma mulher que nasce sabendo que a família tem uma constituição patriarcal, assim, centrada na figura masculina; que existem leis, mas que essas leis foram criadas pelos homens, para os próprios homens, como ela iria fugir dessa opressão, já que isso é tão enraizado, tão dissolvido nas pequenas situações e vivências diárias, fazendo com que essas mulheres nem ao menos saibam que estão sendo oprimidas?
Com tudo isso, entra o conflito na formação do terceiro e mediador ponto proposto por Kant, a formação da verdade no ser. Kant coloca que a maturidade em relação à ética só é alcançada quando há um equilíbrio entre os três pontos, em que a verdade é um produto e ainda um somatório dos códigos e dos conceitos dos outros. Chegamos assim, a um dilema: temos uma mulher que vive numa sociedade que diz que ela deve ser submissa ao marido e, que ao mesmo tempo, diz que ela não deve se deixar agredir; mas quem determina o limite da submissão? É dito a ela que é vergonhoso sofrer violência dentro de casa, ela acredita que os filhos podem sofrer com isso, porém, mais vergonhoso ainda seria não respeitar o seu homem ou pior não tê-lo mais. 
Como então podemos julgar o medo e a preferência pelas flores e dores causadas pelas relações, do que pelas dores da solidão pós-separação, que acabam por surgirem em consequência da formação moral que a sociedade criou de que a mulher é um ser incompleto sem sua família estruturada aos moldes patriarcais? Necessitamos humanizar e sensibilizar a sociedade dando um novo enfoque ao problema que tire a mulher como culpada pela própria agressão, promovendo debates e mobilizações, levando informação e cobrando melhores estruturas não só físicas, mas psicológicas para acolher a mulher.

REFERÊNCIAS:
MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. Zahar, 2007.

5 comentários:

  1. Fragmento do texto:
    Necessitamos humanizar e sensibilizar a sociedade dando um novo enfoque ao problema que tire a mulher como culpada pela própria agressão, promovendo debates e mobilizações, levando informação e cobrando melhores estruturas não só físicas, mas psicológicas para acolher a mulher.

    Aos ditos "donos do poder" #ficaadica

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