terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Sofrimento Ético no Trabalho

Por: Julia Mendes e Micaelly Gomes

Muitas das questões controversas que vem ocupando lugar de destaque em discussões de cunho formal (a exemplo de debates políticos) ou informal (uma roda de conversa entre amigos) culminam em questionamentos éticos: o que é o bem e o que é o mal? Até que ponto uma atitude é certa ou errada? Quais os valores éticos que adotamos em nossas decisões?
Tais questões partem de uma lógica dicotômica e é discutida há tempos por alguns teóricos, dentre eles Sigmund Freud. Apesar de não tratar diretamente a questão ética, assim como fizeram outros autores, em O Mal Estar na Civilização Freud refere-se à ética quando fala sobre o conflito entre duas forças que influenciam a ação humana e que fazem parte da sua natureza: Eros, como sendo o amor, a força que leva à integração entre os homens; e Tânato, definida como a pulsão de morte, que explica a agressividade humana. Nesse contexto, Freud recoloca a sua teoria das funções da consciência, a qual fala sobre Id, Ego e Superego, ao mostrar que grande parte da ação humana não é definida inteiramente pela racionalidade, mas também por elementos inconscientes. O Id corresponde à fonte de energia psíquica de uma pessoa, à sua libido; o Ego, por sua vez, diz respeito à instância consciente, que tenta manter o equilíbrio entre id e superego; cabendo ao Superego, então, a responsabilidade crítica, a autoridade externa, regida por valores morais internalizados. Freud traz, no contexto da ética, uma noção de superego que vai além da consciência individual, mas funciona como superego cultural. Acontece, por exemplo, quando líderes de comunidades ou instituições estabelecem determinadas regras que irão ditar a maneira como as pessoas devem conviver e essas regras são disseminadas na cultura. É dessa maneira que se constitui o que chamamos de ética.
A partir dos desdobramentos do conceito de ética, na prática, é possível percebê-lo em situações do contexto de trabalho? Como as configurações do mundo do trabalho atuais desencadeiam conflitos éticos nos trabalhadores?
Suponhamos que um sujeito encontra-se diante da seguinte situação: enquanto oficial de justiça, recebe um mandado de busca e apreensão de bens essenciais. Entretanto, pensa estar fazendo um trabalho injusto para com os réus da ação, uma vez que os mesmos encontram-se em situação de pobreza e isso terá consequências negativas na vida dessas pessoas. Surge aí, então, uma questão latente: realizar ou não a ação que está prescrita?
Outra situação desse tipo pode acontecer com os sujeitos que trabalham com corte de água e energia elétrica. Pensando, por exemplo, em uma ocorrência na qual o funcionário da empresa tem que cortar a água de um salão de beleza numa sexta-feira, sabendo que a água só seria religada na segunda-feira e que no final de semana é quando o salão recebe um maior número de clientes. A proprietária do salão alega que nos últimos meses o lucro não tem sido suficiente para lidar com todas as despesas do salão e ela acabou se desorganizando nesse sentido. Nesse caso, um conflito ético novamente se instala. Cortar ou não cortar o abastecimento de água do lugar que necessitaria essencialmente desse serviço?
Exemplos como esses fazem parte de uma gama de situações que colocam o trabalhador diante um conflito ético desencadeado pela divergência entre os seus princípios morais e aquilo que está prescrito no seu trabalho, ou seja, aquilo que ele acredita e acha correto fazer diante do que lhe é imposto pelas normas e regras rígidas da instituição. O indivíduo vem a se deparar com um embate, já que está inserido em um sistema institucionalizado e portanto, sujeito às suas prescrições. O sofrimento que acomete o trabalhador nesse tipo de situação é desencadeado por uma sensação de mal-estar que pode exteriorizar-se como insegurança, vergonha, medo e angústia.

Fazendo uma comparação entre essa dimensão da Organização e a sociedade de uma maneira geral, o conceito de mal-estar na civilização, trazido por Freud, assemelha-se ao mal-estar no âmbito psicossocial do trabalho? Em outras palavras: o mal-estar na civilização é o próprio mal-estar no trabalho?
O mal-estar no trabalho, pode, muitas vezes, ser o que precede o sofrimento, partindo do pressuposto que ambos derivaram de conflitos éticos. De acordo com a Psicodinâmica do Trabalho, teorizada por Christophe Dejours, pode-se caracterizar dois tipos de sofrimento: o patogênico e o criativo. Tendo em vista que esse teórico interessa-se em investigar como o sujeito é capaz de manter o equilíbrio psíquico e a saúde mental, apesar dos constrangimentos no trabalho, ele define o sofrimento criativo como o conjunto de soluções favoráveis que o trabalhador cria, na dimensão inconsciente, para que possa preservar sua saúde; sendo, portanto, o sofrimento patogênico o contrário do criativo – quando o indivíduo cria soluções desfavoráveis à saúde. Em outras palavras, o sofrimento patogênico emerge quando as possiblidades de adaptação (da organização do trabalho aos desejos do sujeito) se esgotam. Assim, os sujeitos vivem um equilíbrio instável e precário entre o sofrimento e defesas (Dejours e Abdouchelli).
Quando as estratégias de defesa, sejam coletivas ou individuais falham, ocorre o adoecimento dos trabalhadores.O ideal seria que nas instituições existissem espaços para o sofrimento criativo, pois, é nesse domínio onde as perspectivas de modificação da organização do trabalho são possíveis.
Por fim, reconhecemos as dificuldades de aplicar a noção de superego, seja na consciência individual ou cultural, dentro do âmbito privado das organizações. As transformações no mundo do trabalho criou modelos de funcionamento onde esses aspectos não são levados em consideração, os novos modelos oprimem as subjetividades não havendo espaço para sofrimentos e fracassos. Por isso, é necessário que os trabalhadores não desistam de resistir a essa relação de dominação, que eles busquem a criação de seus próprios espaços individuais e coletivos usando com uma ferramenta possível o aspecto crítico do superego, no qual a ‘lei’ e as normas são vistas como uma construção coletiva viva e por isso em permanente transformação.



Referências

Antloga, C., & Avelar, R. (2013). Mal-estar no Trabalho. In Vieira, F.O., Merlo, A.R.C &   Mendes, A.M. (Orgs). Dicionário Crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho. 1. Ed. Curitiba: Juruá.

Dejours, C., &Aaboucheli, E. (2009).  Itinerário teórico em psicopatologia do trabalho. In Betiol, M. I. S. Psicodinâmica do trabalho. Contribuições da escola dejouriana à análise de relação prazer, sofrimento e trabalho. 1. Ed.10. reimpr. São Paulo: Atlas.

Marcondes, D. (2007). Textos básicos de ética: de Platão à Foucault. 1. Ed. Rio de Janeiro: Zahar.

Vasconcelos, A.C.L. (2013). Sofrimento ético. In Vieira, F.O., Merlo, A.R.C & Mendes. (Orgs). Dicionário Crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho. 1. Ed. Curitiba: Juruá.

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