Por: Shirlaine Rosaly
Verônica
Barros
Vivemos
numa época marcada por um grande desenvolvimento científico, onde encontramos
soluções para diversos problemas, inclusive tecnologias agrícolas avançadas que
nos permitiram um aumento considerável na produção de alimentos. No entanto,
ainda há um grande número de pessoas passando fome no mundo, o que parece
contraditório por ser exatamente no momento em que conseguimos produzir uma
quantidade de alimentos suficiente para alimentar toda a população mundial.
Portanto, o que poderia já ter sido extinto ainda persiste entre nós, o que não
faz sentido. Outra contradição que encontramos é o aumento da obesidade,
principalmente nos países industrializados. Enquanto alguns estão morrendo por
não terem o que comer, outros podem morrer por comerem demais. Os preços dos
alimentos cada vez mais atingem níveis recordes no mundo, o que os torna
inacessíveis à população de baixa renda. Com isso a fome cresce e há muita
revolta.
Segundo um estudo realizado pela ONU
(Organização das Nações Unidas) 30% de toda produção de alimento do mundo acaba
indo para o lixo, o que equivale a 1,3 bilhões de toneladas, o suficiente para
alimentar cerca de 47 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe. Aqui no
Brasil, a CEASA-RJ, deu início há três anos um sistema de coletas de alimentos
doados pelos comerciantes após à observação de um grande desperdício que
ocorria porque os alimentos eram jogados no lixo por não possuírem mais valor
comercial, apesar de estarem em condições de serem consumidos. Chegam a
arrecadar 80 toneladas por mês que são doadas a 120 instituições filantrópicas
e a 5.000 famílias de baixa renda. Uma das instituições beneficiadas é a
APAE-Rio que recebe duas remessas de alimentos por mês, o que proporciona uma
refeição a mais às crianças e adolescentes que atendem.[1]
Talvez
uma ação isolada não resolva o problema da fome no mundo, mas pode servir de
exemplo para inspirar novos projetos como esse em outras partes do mundo. Essa
ação passa pelo critério de utilidade de Stuart Mill[2], pois tem
consequências boas para um grande número de pessoas, contribuindo para o seu
bem-estar proporcionando felicidade geral, tanto para quem recebe, como para
quem doa. Essa felicidade a que ele se refere não possui um sentido individual
como estamos acostumados, mas de um bem-estar coletivo. De acordo com a ética
utilitarista o bem é o que minimiza a dor e maximiza os benefícios para um
número maior de pessoas.
Ações
como essas demonstram o quanto as pessoas que decidem realizá-las estão
preocupadas mais com o interesse da totalidade do que com seus próprios
interesses, pois exige uma certa dedicação de tempo, habilidades e até de
recursos financeiros para conseguir que esses alimentos ainda cheguem ao seu
destino em condições de consumo. Além do benefício de aliviar a fome de algumas
pessoas, indiretamente todas as pessoas também estão sendo beneficiadas com a
redução do lixo que contamina a terra, portanto, é também uma questão
ambiental.
Aristóteles
já falava da importância do saber prático do bem no que se refere à ética,
nesse sentido devem ser estabelecidas as melhores condições para que se alcance
o objetivo primordial que é a felicidade ou a “eudaimonia”. A pessoa que
pratica uma ação em benefício do outro, também está obtendo benefício próprio,
uma vez que o termo “eudaimonia” entende-se como bem-estar sobre aquilo que se
realiza. Como também acreditava que as palavras eram insuficientes para nos
tornarmos bons, que apesar de parecerem ter poder para estimular as pessoas de
espírito generoso, são “impotentes para incitar a maioria das pessoas à prática
da excelência moral”. [4] A “eudaimonia” é expressada nas palavras
de Lecildo Ribeiro, um produtor rural, ao ser questionado sobre sua decisão de
doar mercadoria para o projeto: “tem muita gente precisando, então eu tenho
prazer de fazer isso, essa doação.” [1]
Maria Helena, uma recifence indignada por
presenciar uma cena de uma pessoa catando e comendo lixo numa praça pública,
tem a opinião de que permitir que outras pessoas passem fome possa ser uma atitude
tão violenta quanto outras formas de violência mais evidentes. [3]
Um outro exemplo de indignação encontramos nas palavras de Manoel Bandeira:
"Vi
ontem um bicho
Na
imundície do pátio
Catando
comida entre os detritos.
Quando
achava alguma coisa
Não
examinava nem cheirava:
Engolia
com voracidade.
Não
era um gato,
Não
era um rato.
O
bicho, meu Deus, era um homem."
Presenciar
ou ter conhecimento de uma cena como essa pode ser um momento de refletirmos
sobre o porquê de pessoas estarem disputando sua sobrevivência com outros
animais quando há abundância de alimentos. Podemos nos indignar como Maria
Helena e Manuel Bandeira, agir como os comerciantes da CEASA-Rio ou
simplesmente nos acostumar a ponto de se tornar uma cena tão comum que faça
parte de nosso cenário.
[2] Marcondes, D. (1953). Stuart Mill. In:_____Textos
básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.