Por: Tamires Cândido de Santana e
Nivaneide Ferreira da Silva
Em uma ilha distante chamada Baralho
Encantado, viviam famílias de naipes que em troca de moradia, segurança e
alimentação trabalhavam pesado na agricultura, na pecuária e na marcenaria. A
sociedade era extremamente organizada, as quatro famílias totalizavam 52
cartas, com 13 em cada família, obrigatoriamente. Cada família era responsável
por um trabalho específico: cabia aos naipes de ouro a produção de móveis
utilizando madeira, aos naipes de espada cuidar do plantio e colheita de
frutos, aos naipes de copas a criação de animais e aos naipes de paus a
manutenção do reino em geral, como a limpeza. E assim, viviam todos felizes e
em paz, por mais que hora ou outra reclamassem estar muito cansados por conta
do trabalho árduo.
O casamento era “TRIGÂMICO”, sendo
regra, no entanto, que ele ocorresse apenas entre cartas do mesmo naipe ou
entre cartas da mesma cor.
O Sr. Curinga era a única carta livre
daquele local e diferia de todas as outras por ser maior e ter cravado no peito
o símbolo real de multi-adaptação, que representava o fato de ele poder se
relacionar com qualquer uma das famílias de naipes. Ele era o único na ilha que
não trabalhava, sendo visto assim por todas as outras cartas como um ser
estranho, tanto por sua aparência, tanto por desrespeitar as regras impostas do
Baralho.
Havia um único dia, a cada 50 anos, em
que os outros naipes eram obrigados a recepcionar bem o Curinga. Era o dia do
seu aniversário, uma vez perante as ordens da sociedade do Baralho, esse dia
era um dia que o aniversariante merecia o máximo de respeito e atenção, podendo
se expressar e pedir o que quisesse.
Enquanto todos faziam muito barulho e
estavam sempre atarefados com suas famílias e trabalho, o Curinga era sempre
silencioso e apenas ficava em cima de uma árvore da ilha quieto. No dia do seu
aniversário ele exigia que todos fizessem silêncio e apenas pensassem no porquê
de sua existência, de onde surgiram, e porque viviam daquela forma, o que era
uma tarefa difícil para todos, pois os tiravam da zona de conforto e os
deixavam amedrontados. Este motivo fazia com que o tão falado dia do
aniversário do Curinga fosse um dia temido.
No entanto, depois do último
aniversário o Curinga havia mudado. Ele continuava na sua árvore, mas ao invés
de ficar apenas quieto, ele escrevia o tempo inteiro e escreveu intensamente durante
todos os 50 anos, até que chegado o tão falado, esperado e temido dia do seu
aniversário ele exigiu que todas as 52 cartas ouvissem atentamente seu
discurso:
Senhores
naipes da Ilha do Baralho Encantado, neste dia eu gostaria apenas de fazer um
pronunciamento de todas as questões que vi e ouvi nesta ilha, mas nunca pude
ser levado a sério.
Em
princípio, percebo que todos vocês sempre me julgaram por eu ser maior, mas a
questão é que vocês que estão numa menoridade e que acham confortável ser menores,
apenas obedecendo leis, regras e executando ordens sem o domínio do raciocínio,
sendo restritos da liberdade de pensar por si próprios e não se permitem o
silêncio. Sempre estão atarefados ou tagarelando para que suas mentes não
possam refletir a respeito de questões existenciais fundamentais para a
civilização de naipes.
Vocês
sempre serão tolos porque seus reis também são tolos e passam apenas tolices
para que vocês obedeçam! Como vocês prezam pela segurança de seus naipes acima
de tudo, obedecem a justiça cegamente. Mas como irão conseguir ter liberdade se
sempre estão obedecendo? Me digam! Vocês não podem me dizer pois vocês nunca
pararam para pensar nisso! Vocês vivem baseados em conceitos ancestrais de
sociedade. Por que trabalham de acordo com a família de naipe? Por que não têm
a liberdade de trabalharem no que acham melhor? Por que não se questionam sobre
isso? De onde vocês vieram? Pra onde vocês vão depois disso? Pra quê tanto
trabalho? Como vocês não conseguem se questionar e se inquietar com isso o
tempo inteiro? Como conseguem viver apenas por viver? Por que o casamento só
pode ocorrer com cartas da mesma cor? Por que vocês são trigâmicos? Isso é uma
questão apenas do controle dos corpos naipianos que induzem vocês a aceitarem
algo como moral, reprimindo o real desejo de serem livres e casarem com quem
quiserem. Vocês julgam ser errado casar um às de espadas com um rei de copas,
mas a relação de certo e errado é apenas relativo, é imposto e vocês nunca se
questionaram o porquê de ser errado, apenas aceitaram como coisas que são do
bem e do mal.
Mas, tudo
isso cai no relativismo. Como todas as minhas perguntas. Afinal, as melhores
questões deixam uma interrogação mental!
Dito seu discurso, o Curinga
simplesmente desapareceu feito fumaça, deixando todas as 52 cartas perplexas e
sem entender como ele desapareceu daquela forma. Discutiram, questionaram, se
inquietaram com quais seriam as possibilidades de para onde ele teria ido e
para onde todos iam ao morrer. Isso fez com que de certa forma começassem a
pensar por si próprios, atingindo assim certo grau de maioridade.
(O Sr Curinga morreu de propósito para
tentar salvar aquela pequena civilização naipiana do aprisionamento moral,
ético e racional).
Nenhum comentário:
Postar um comentário